"Até mesmo o silêncio é um texto."

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Epílogo.

Eu já estava almoçando quando ela levantou e veio até a sala. Recebi-a com aquele tipo de sorriso que não é tanto da boca, mas mais dos olhos.
- Não fala nada!
- Eu não me atreveria.
Sentou no sofá. A dor de cabeça era visível. Não lembrava de muita coisa da noite anterior.
- Eu ia ficar impressionado se tu lembrasse...
- Lembro de ter beijado na boca, mas não é memória normal. Eu não consigo visualizar, só lembro da sensação do beijo. Você me beijou?
- ...
- Sério que não?
Um certo pavor trespassou pela face inchada de trago.
Sorri.
- Beijamos, sim.
- Ai que susto! Já achei que tinha beijado uma das meninas...
- Só isso que tu lembra?
- Só... por quê? Teve mais??
- Não. Não que eu tenha visto.

Quando o dito namorado chegou de Londres, eu estava largado no sofá de frente à TV, com o laptop no colo. Meu cérebro ordenava um "age normalmente" repetitivo e, de certa forma, nervoso. Não era medo. Na verdade, era sim. Não medo físico, entretanto. Era um medo emocional, se é que isso não é pleonasmo. Podia me defender muito bem numa briga de socos, mas era do stress da discussão e o clima pesado que permaneceria ali pra sempre que me assustava. A guria era louca o bastante pra ter relatado tudo pro cara, disso eu não duvidava.
Ele veio até mim. Apertamos as mãos. Contato visual. Sem sorrisinhos falsos, mas também não antipático. Pelo menos é isso que penso que transpareceu.
Poucos dias depois eu mudei de casa. Não por causa dos fatos ocorridos, porém. Alugara o quarto por um mês e o prazo esgotou-se.
Só a vi uma vez mais. Durante o trabalho.
Era qualquer coisa entre cinco e seis da tarde. Eu arruma alguns sapatos nas estantes. Terminei e encaminhei-me para outra estante e, no caminho, havia alguns pares jogados no chão. Abaixei e os peguei. Na subida, meus olhos deram de encontro com os dela, que vinha caminhando na minha direção. Não sei como nem porque, mas antes que meu cérebro desse em si de quem era, a cabeça já tinha virado de súbito, os meus olhos já tinham fugido e os braços já levantavam prontos pra trabalhar. Um segundo e ela passava por detrás das minhas costas, que temerosas esperavam um toque e um "eaí, vai fingir que não me viu?"
Mas não. Não houve toque, nem um "oi" irritado nem nada. Respirei e, mais calmo, pensei, indignado:
"Fazida..."

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Final

Pra ser sincero, não lembro quando exatamente foi a terceira noite. Talvez já no dia próximo, talvez no outro final de semana. Quebrei a cabeça tentando recordar, mas já me é impossível. Faz mais sentido pensar que foi no final de semana, pois todas as meninas participaram.
Então que naquela noite a boa era caipirinha. Limão, açúcar e vodka. As melhores coisas da vida são também as mais simples, dizem. Nossa amiga Paulista bebia como fosse água, e nossa amiga Gaúcha esquentava minha orelha mais uma vez com aquela conversa de "eu não vou cuidar de bêbado", ao que eu replicava um sorridente "não te preocupa" enquanto levava o copo cheio para a gente sabe quem. À noite foi indo com várias risadas e copos indo e vindo, cada vez com menos limão, cada vez com mais vodka.
Até que a Paulista surtou.
- Eu vou ligar pro Vítor!
- Não, você tá louca, não - retrucava a curitibana, num desespero tão preocupado que parecia simulação. A voz semi-ofegante e os olhinhos brilhando, alcoolicamente umedecidos.
- Eu preciso, cadê meu telefone??
Eu de pé, encostado à pia, com o copo à mão, sorria de leve. Entretanto, uma das minhas sobrancelhas começava a alçar-se...
- Não, Paulista, você tá bêbada, meu!
Ela levantou-se, visivelmente inebriada, à procura do telefone.
- Não, meu, não faz isso!
Também falou a Gaúcha:
- Para, Paulista. Tu não tá em condições de falar com o Vítor. Se tu ligar pra ele assim, tu só vai piorar as coisas.
Ela olhava pra cá e pra lá, procurando o telefone, que a Curitibana já havia pego.
- Por favor, eu tenho que ligar pra ele - e agora era quase um leve choro.
Puxei uma cadeira até onde ela estava.
- Senta aqui e te acalma.
- Isso, senta ali que vou pegar um copo d'água pra ti...
Bebeu um gole e botou de lado. Então, de supetão, levantou da cadeira e foi em direção ao precioso telefone. Não consigo pegá-lo, contudo. A outra menina foi mais ligeira. Peguei-a pela cintura e trouxe de volta à cadeira.
- Tu tem consciência que o que quiser que tu diga pra ele, vai transparecer que tu tá alterada e andou bebendo? Não tem como isso ser uma boa ideia.
Tudo chegou a um ponto em que eu, posicionado atrás dela, segurava gentilmente seus braços contra os da cadeira, enquanto ela murmurava que a Curitibana ia roubar o telefone dela. Eu a acalmava e fazia pouco das coisas ridículas que ela falava.
A certa altura, reparei que as duas outras se tinham retirado e cochichavam lá na porta de entrada. Cheguei meu rosto perto do dela e delicadamente trouxe seu queixo em minha direção. Era eu debruçado sobre o encosto da cadeira onde ela sentava e virava o pescoço, de forma que as duas bocas pudessem se encontrar. Beijamos por segundos, até que percebi que as duas caminhavam pelo corredor, vindo em nossa direção.

Não lembro o que aconteceu depois. Ela certamente se foi acalmando à medida que o àlcool foi deixando o cérebro. A única memória que tenho depois daquele beijo é de estar recostado no corredor em frente à porta do banheiro, onde ela estava. A impressão que tenho é de estar cuidando dela, enquanto as outras meninas tinham desaparecido. Estavam dormindo, provavelmente. Esperava ela sair porque visivelmente passava mal e só a deixara entrar depois de me prometer que não trancaria a porta.
Demorava a sair.
Bati na porta. Ninguém respondeu. Tentei novamente. Mais uma vez as batidas ecoaram pelo silencioso corredor. Entrei no banheiro.
Encontrei-a deitada de bruços na lajota fria do banheiro. Olhos fechados, boca semi-aberta. Um bocado de baba/vômito no chão perto do rosto. Um pedaço de papel higiênico, também. Acordei-a e a ajudei a levantar.
- Lava o rosto.
Ela resmungou qualquer coisa.
- Quê?
- Para...
- Lava logo eu vou te levar pra cama.
- Para, não quero que você me veja assim...
Abriu a torneira e lavava o rosto, enquanto eu dizia:
- Deixa de besteira, todo mundo já teve seus dias de porre e dormiu no banheiro...
Virou o rosto molhado pra me fitar.
- Você já?
Sorri.
- Não. Mas é normal...
- Ai, que vergonha.
Secou-se.
- Vem, vamos, vou te colocar na cama.
Ela virou-se e pude ver a blusa úmida de algo que eu não sabia - e nem queria saber - o que era. Segurei-a pela cintura e guiei-a pelos três ou quatro metros que separavam a porta do banheiro da do quarto.
- Tu não precisa fazer isso... Não precisa me cuidar... Por que tá fazendo isso... - a voz dela vibrava sonolenta e manhosa.
- Todo mundo precisa de ajuda, uma hora ou outra.
Chegamos à beirada da cama do casal que, na verdade, eram duas camadas de solteiro ajuntadas.
- Tira a blusa, tá toda molhada. Eu te ajudo.
- Não! Não quero que tu me veja nua...
"Ah tá..." pensei.
- Tudo bem, então tira tu mesma.
De costas pra mim, tirou rapidamente a blusa e atirou-se na cama.
- Por que tá fazendo isso... - ainda murmurou sonolenta.
- Boa noite.
- Boa noite...
Virei-me e apaguei a luz. Segurei a maçaneta da porta com minha mão direita e dei um passo à frente. Ia puxar a porta, quando a ouvi dizer, claramente, embora a voz tivesse saído abafada pelo travesseiro no qual ela afundara a cara:
- Eu te amo!

Congelei por meio segundo. O braço esticado, a mão na maçaneta. As pernas abertas e o tronco levemente inclinado à frente, ainda esperando para terminar o movimento de saída. As palavras ecoaram em meus ouvidos. Pensei no que aquilo significava.
Suspirei pesadamente e saí, fechando a porta atrás de mim.