"Até mesmo o silêncio é um texto."

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Parte primeira.

Agora, aqui, tudo é silêncio. O único, ou os únicos sons que talvez se possam ouvir são os das teclas que eu bato com esses dedos ligeiros, misturados com os eventuais carros que passam na rua em frente. Agora são três e doze da manhã em Dublin. A maioria das baladas já acabou antes das duas e esses carros que passam só podem ser retardatários de uma noite que ainda não acabou. Lá fora faz frio, um frio de verão tão comum e europeu. Mas aqui, aqui dentro, não é frio. Bebo o que sobra das Tuborgs que compramos para essa noite que reservou não mais que muitas emoções.

Tá, falar em emoções é meio exagerado, até porque eu me situo um pouco além disso. O que quero dizer é que, para mim, não houveram emoções, senão um pouco de surpresa diante do que o mundo pode aprontar. Mundo velho, mundo safado. Se eu o chamasse de deus, muitos ficariam ofendidos. E é por isso que eu o chamo mundo.

Acabei de colocá-la a dormir nua em sua própria cama, acabada. Não pelo sexo, mas pela bebida. É, eu sei, mas não consigo me aproveitar nessas situações. Algum maldito (ou divino?) código de ética intrincado no meu cérebro me faz ver os maiores seios da minha vida e deixá-los em paz, dormindo seu sono alcoólico.

É prudente que eu conte como tudo começou. Afinal, tudo que se espera de uma história é que tenha início, meio e fim. Terão de me desculpar que o fim ainda desconheço, mas garanto que do início ao meio eu os proverei. A não ser que o resto da Tuborg acabe antes que eu possa chegar até lá. Entretanto, comecemos. pelo começo, que é mais prudente.

Então eu cheguei a Dublin e tomei meu lugar na casa que abriga sete pessoas. Até dia vinte e sete, efetivamente, é aqui que moro. Havia um paranaense e um casal de paulistas que estava aqui há meses, uma gaúcha que chegara comigo e uma outra paranaense que chegara dias antes.

Como de praxe, falei pouco. Quem queria conhecer-me um pouco mais tinha de transpassar a barreira da minha falta de interesse por outros seres humanos, ou não-humanos. Alguns, com certeza, tomaram da opinião geral de que eu era esnobe e considerava-me mais que todos. Não era, não é, e nunca será isso. É apenas desinteresse. Todavia, o paranaense tomou coragem e atravessou a barreira. E eu, que já o havia rotulado como o cara simpático que agrada a todos, acabei cedendo. Não foi, contudo, uma cessão deliberada. É sabido da minha antipatia com esses conquistadores sociais que tem o poder de cativar toda e qualquer criatura que passa seu olhar. Antipatia essa que pode, sem exagero algum, ser chamada de inveja. Porém, esse paranaense não conquistava as pessoas com aquele pensamento egoísta, tão humano, de lucro próprio, como faz a maioria. Pois foi que acabei tornando-me seu quase amigo, de verdade.

Foi ele quem fomentou então o interesse dos outros por essa minha face. Claro, porque se ele, tão querido por todos, se interessa por mim, todos hão de querer se interessar. Talvez não por interesse genuíno em mim, mas por ele, saca?

Assim foi por duas semanas.

Aí aconteceu algo que não vou dar-me o trabalho de explicar todos os detalhes e complicações, porque isso me enxe o saco. O homem do casal paulista foi morar num flat com os pais, que estavam visitando a Europa por umas semanas. A mulher ficou sozinha e, como toda mulher, sentindo-se carente. Vocês já intuem o que acontece agora, não é mesmo? Mas calma lá. Vamos por partes.

O certo agora, como bom contador de histórias, é falar sobre essa personagem que vai tomar conta da história a partir de agora. Porém me falta vontade e perspicácia para descrevê-la nos mínimos detalhes. Diremos, assim, que ela é uma paulista extrovertida, e isso já diz bastante.

Depois, vim a saber que o casal era conhecido como casal Nardoni, e fez todo o sentido. Brigavam com certa frequência, mesmo estando ali, naquele apartamento, divindo o espaço com outras pessoas. Eu não me importava, mas tinha de disfarçar a todo momento aquele meu sorriso de canto, debochado, cruel.

Acontece que chegou o dia de o paranaense, como já dito bem quisto por todos, deixar o apartamento. Viajaria por alguns países e depois retornaria a sua casa em Curitiba. Mesmo o conhecendo há pouco tempo, senti certa comoção, que para as meninas foi ainda maior. Não que chorassem copiosas lágrimas, mas sentiram. Era com compaixão, e também certa inveja, que eu ouvia, durante o desenrolar do dia, os suspiros de "que saudade do paranaense..."

Naquela noite, decidiu-se que compraríamos cervejas e vodka para celebrar. Não a recente saída, é evidente, mas sim a recém adquirida folga do trabalho no outro dia da paulista. Compramos uma garrafa, que esvaziou mais depressa que latinha de Coca na mão de piá. Buscamos outra, e essa foi absorvida com mais calma.

Não lembro exatamente como começou ou o que fez acontecer, mas foi que, em dado momento, ela, a paulista, começou a aproximar-se. Eu estava sentado/deitado no sofá e ela ao meu lado, porém, sentada virada na minha direção. Percebia que ela estava alterada e que começava, de leve, a pronunciar-se para mim. As outras duas meninas permaneciam ocupadas com uma coisa ou outra na cozinha e, o mais interessante é que não há paredes dividindo os quarenta metros quadrados que ocupam a cozinha, a sala de estar e de jantar. Caipirinhas rolavam na noite fresca de Dublin, mas o clima ali era quente.

Eu desconversava diante das investidas, mas no fundo, meu animal interior estava pronto a pular em cima da presa que oferecia o pescoço cheiroso. Contudo, eu era prudente. Era importante que ninguém soubesse, o segredo era alma daquele tipo de negócio. Depois eu talvez diria "perdoe-me padre, pois pequei". Tá, eu não diria. A mão dela começou a tocar, despretensiosamente, minhas pernas, naquele sem-querer querendo. Mais ou menos por aí a gaúcha recolheu-se, foi dormir. Tinha aula no outro dia, como se isso fosse desculpa pra não continuar ali, bebendo e vivendo. E aconteceu que a curitibana foi ao banheiro, deixando a brecha que nós dois, ali no sofá, esperávamos. Entretanto, alguma amarra, que você pode chamar escrúpulo ou cú-doce (também não sei o que foi), me fez esquivar daquela carnuda boca adocicada com álcool e limão.

Era uma bela morena de pele clara. Os olhos negros tinham certa profundidade e permaneciam sensualmente semi-fechados ao me fitar. O nariz era quase perfeito, não fosse a pequena curvatura adunca, imperceptível aos olhos menos exigentes. A boca, como já disse, carnuda e muito bem lapidada abria-se num grandioso sorriso de dentes bem postos que adonava-se das bochechas fofas. Como cerejas no bolo, pequenas sardas, invisíveis a mais de um palmo de distância. Os cabelos negros desciam longos pouco abaixo do pescoço quando soltos. E se caíssem pelo rosto, como aconteceu algumas vezes, enloqueciam até o mais velho dos pênis. O corpo era legítimamente italian-made: seios grandes, braços roliços, cintura proporcional e uma bela bunda, reforçada por coxas bem recheadas. É, meu caro, de enlouquecer.

Tendo eu esquivado o beijo, ela acertou minha bochecha. Não desistiu, porém, e desceu, provocando arrepios no meu pescoço com os lábios. Jesus. Então ouvi a porta do corredor se abrir, e a afastei. Ela, aos risos, pedia mais bebida. Eu já tinha parado.

Coisas parecidas aconteceram aqui e ali, até que ela parecia descontrolada e eu aconselhei a curitibana a levá-la ao terraço, onde um vento frio e insistente sempre sopra, para que ela recuperasse a consciência. Não lembro exatamente o que aconteceu, mas quem acabou levando-a, fui eu.

Era uma bêbada teimosa, queria ir pelas escadas. Segui-a, cuidando para que não caísse, fazendo o papel do amigo responsável que não está com vontade de pegar a mulher do próximo. No jogo de escadas que fica entre o quarto e o quinto andar, ela parou. Recostou-se junto a janela fechada, que permitia ver os fundos do edifício, o pátio decrépito de uma empresa de transportes. Além disso, algumas luzes acesas em alguns dos apartamentos da vizinhança. Uma paisagem horrível, muito diferente dos parques e dos flats georgianos. Ali também encostei-me.

- Ai, gaúcho...

- O quê?

- Fica comigo...

- Não vai dar.

- Por quê? e esse porque tinha um "erre" carregado do interior paulista, algo como "abre a porteira, Chico Bento". E tinha todo seu charme naquela boca carnuda.

- Você não tem namorado?

- Tenho, mas eu quero ficar com você... você não quer?

- Eu quero.

- Então?

- Mas não posso.

- Por quê? aquele mesmo porque enlouquecedor.

- …

Deu um passo em minha direção e me abraçou.

- Posso te beijar?

- Na bochecha, sim.

- Não... quero te beijar na boca.

Não tive tempo de responder, pois a boca dela já passeava pelo meu pescoço, enquanto suas mãos apertavam meu corpo contra o dela e seu ventre se pronunciava contra o meu. Acariciei seu rosto com o meu. Se era para provocar, então provoquemos. Procurei sua boca, titubeei e afastei, deixando-lhe a bochecha. Ela beijou, umedecendo minha pele com saliva morna. Brinquei assim mais um pouco, observando como seu corpo deixava-se guiar pelos sentidos. Deixava os olhos fechados e parecia embalar-se por uma dança de aromas e calor, ansiosa pelo toque dos lábios.

Rendi-me. Toquei sua boca com a minha, de leve no primeiro momento, como o jogador de poker que examina os adversários nas primeiras rodadas, para aplicar todo poder de sua estratégia no decorrer do jogo. E então as mãos foram jogadas, e os lábios se comprimiram com força, confundindo-se numa mistura rosada ou avermelhada, uma luta de carne contra carne, uma guerra de pele que só possui vencedores.

Minhas mãos, que nessas situações sempre adquirem certa vida própria, começaram a explorar o terrítório repleto de belezas naturais de seu corpo. Começaram pelos cabelos macios e cheirosos como jardins vitorianos no auge da primavera. Desceram os caminhos de suas costas para quedar-se nos montes presunçosos onde terminava o vale da espinha dorsal. Entraram pela calça jeans apertada e descobriram uma calcinha minúscula, mas, sobretudo, regozijaram-se na superfície macia daqueles montes. Apertavam com força o máximo que conseguiam agarrar naquela abundância de sensualidade. Depois de satisfeitas, decidiram seguir a trilha deixada por aquele finíssimo fio de calcinha que circulava a cintura e levava à caverna do tesouro. Cada mão seguiu um caminho, uma desceu pelo leste, enquanto a outra tomou o oeste. Chegaram à planície, vestida graciosamente pela vegetação rasteira que aguçava o tato dos dedos. Brincaram mais um pouco, indo e voltando pelo mesmo caminho. Até que a mão direita resolveu ser hora, e avançou pela planície. Chegando à entrada da caverna, o terreno estava úmido e isso era por demais agradável. A essa altura, as bocas já se tinham desgrudado, mas ela beijava meu pescoço e agarrava-se ao meu corpo com ainda mais força. Suspirava e tudo isso.

Muito bem, já era hora de parar. Assumi de volta o controle das mãos, removi-as das zonas erógenas e afastei seu corpo do meu, protestando que ela deixaria hematomas incriminatórios na minha pele de branca de neve. Ela afastou-se. Estava alterada. Relembrei-a do motivo de estarmos ali. Fomos até o elevador e subimos até o terraço.

Já começo a ver a luz entrando pela janela a minha frente. Não faz sol, será mais um dia cinzento que talvez não valha aproveitar. Acabou a cerveja e o sono me tenta. Talvez seja até melhor terminar por aqui e deixar espaço para uma sequência. Melhor ou não, é assim que vai ser.