"Até mesmo o silêncio é um texto."

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Parte Quarta.

Agora, neste exato momento, faz mais de um ano que tudo foi dito e feito. A preguiça, mas também certo receio de não conseguir retratar os fatos com a acurácia necessária, fizeram com que deixasse para depois a tarefa de digitar, passar pra tela, não, pro disco, digo, pra rede, o desenrolar da narrativa. Azar. Agora o que resta é relatar, da forma mais fiel possível o que ainda lembro da inusitada sequência de palavras e expressões daquela personagem, tão real e irreal. Vai sair algo muito possivelmente diferente do que realmente aconteceu, porque a memória, como a carne, é fraca. Vai ser como aquelas histórias que a sua vó conta, quando chega a uma certa idade onde imaginação substitui as células que o cérebro já perdeu, quando ela diz algo como ter tido dois maridos (e aí tu te pergunta "mas quem foi esse segundo?") e o melhor a fazer é continuar perguntando e investigando e descobrir que a imaginação humana não tem mesmo limites. Não estou tão velho assim ainda, mas com certeza algumas células do time de um ano atrás já se queimaram pelo álcool, ou congelaram por causa do frio. Porém, mesmo não sendo a verdade propriamente completa, será a que restou e a que vai me acompanhar até o fim dos dias. E tendo dito isso, sigamos com a estória.

Depois de digitar e bebericar, a lata acabou por secar. Olhei pela janela e alguma claridade já entrava na sala. Eu queria digitar mais, aproveitar que estava tudo fresco na memória para poder retratar tudo com fidelidade, mas o sono chegara. Bocejei bonito, e decidi procrastinar.
Lembro de ter acordado lá pelo meio-dia. Tempo com cara de que chove e não molha. Meus pensamentos arrolavam acerca do que acontecera na noite anterior, e como que seria dali pra frente. Como dizer "bom dia" e coisa e tal. Sentei na cabeceira da mesa novamente, onde o laptop me esperava desde que o deixara ali ao clarear do mesmo dia. Pra onde o sol teria ido?

Fiquei algum tempo ratiando na frente da tela, até que ela apareceu.
- Bom dia.
Foi um bom dia sério. Não, não exatamente sério, mas neutro. Neutro com um quê de jovial. Acho que essa é a melhor forma que posso encontrar pra descrever aquele bom dia. Ela passou do corredor dos quartos direto para o sofá, onde sentou-se com seu laptop. O elefante branco ficou ali, no canto da sala/cozinha, de boa, tranquilo e sereno, até que ela perguntou, ainda fitando a telinha que tinha à frente:
- O que aconteceu ontem, Gaúcho?
- Tá brincando que tu não lembra...
- Eu lembro, mas não entendo...
- Pra mim tá bem claro... - a minha voz rolava calma - tu tava puta com o que teu namorado poderia tar fazendo lá em Londres e decidiu se vingar. Aí decidiu usar o primeiro cara que apareceu. E deu sorte que era um loirinho de olhos azuis - acrescentei com um sorriso.
Ela sorriu e tudo o que conseguiu dizer foi "aii..."

Aquela conversa não durou muito, pois eu tinha que sair pra fazer qualquer coisa e só voltei à noite, quando ela já tinha saído pra trabalhar. Era babá de três criancinhas inocentes.
No outro dia, acordei tarde. Nas minhas primeiras semanas de Irlanda, o que sabia melhor fazer era dormir. Beirava o meio-dia e eu tinha aquela fatal dúvida, se tomava café da manhã ou se pulava direto ao almoço. Fiz uma torrada. Depois de comer, voltei ao laptop. Abri a caixa de e-mails, li alguns, não li outros, excluí todos. Abri o Facebook. Pra minha surpresa, havia um recado dela no meu mural. "vai estudar mlk! Hahaha te encho ate pelo face! Kkkk". Primeiro, ponderei a respeito do significado da sigla. Era "muleke" ou "maluko"? Não importava, na verdade, mas eu, subconscientemente, tentava tirar de foco o fato de que ela postara algo no meu mural. Para as aparências, éramos, ou pensava eu que éramos, semi-desconhecidos que casualmente dividiam um apartamento por um curto período, sem contato maior que o superficial "dormiu bem" ou "será que chove?"
Uma frase casual que significava problema, até porque eu sabia o quão ciumento era o namorado, com o qual dividia o perfil no site de relacionamentos. Mas se fosse isso apenas, até estava bom. Acontece que se seguiram comentários de pessoas que conhecíamos em comum. Uma tripa de "hahaha's" e "hihihi's" que me fez enrugar a testa. Depois de tudo naquela noite, ainda aquilo.
Pensei muito em se deveria escrever algo. Diplomacia é uma arte: teria que ser alguma coisa muito neutra que tirasse qualquer suspeita de um "pode ter havido" - que realmente houve, é claro. Depois de minutos sem encontrar qualquer frase que causasse tal efeito, resolvi ignorar completamente. Fechei os dois olhos e me fiz de louco, como se nunca o tal post tivesse existido. Deixei-o lá, entretanto. Não o apaguei, porque talvez fosse até pior. Com o tempo, eu deletei, mas naquele momento não seria oportuno. Aquele pequeno conjunto de frases me perseguiu pelo dia inteiro.
À noite, ela voltou da casa onde trabalhava. Havia alguns restos de bebida que, automaticamente, demos fim. Era cedo, ainda, porém tarde pra se comprar mais álcool. Ficamos todos na sala, num clima de fim de festa, conversando sobre isso e aquilo sem muito ânimo. As meninas foram até a janela e começaram a mexer com os rapazes que passavam. Parecia mesmo que se divertiam, fingindo serem americanas. Os trouxas lá embaixo davam corda. Não lemro o que eu pensava sobre isso no momento, devia estar sorrindo de escárnio ou sinismo ou qualquer uma dessas coisas detestáveis. As pessoas foram aos poucos se recolhendo, ao ponto de restar a paulista e eu, cada um deitado em um dos sofás, procurando algo de inútil pra assistir na TV. Aqui e ali, ela entrava em assuntos mais profundos. Sinceramente, não lembro dos pormenores, mas devia girar em torno do namorado, família e blábláblá. Perguntava-me a mim mesmo por que ainda estava ali, por que ainda não me tinha recolhido como todo o resto.
É uma pena não poder reproduzir os diálogos, mas a próxima lembrança que tenho é de sentar no sofá em que ela estava deitada. Mirava-me com olhos semi-cerrados de sono ou torpor. Acariciei os cabelos negros, com leveza e zelo, sem olhar em seus olhos, porém.
- Por que você é tão cuidadoso... Por que você tá fazendo isso?
Pensei um instante.
- Não sei.
E era verdade.
- Transa comigo?
Parei, virei a cabeça e contemplei a janela. O sol já nascia. Voltei-me lentamente, comprimindo os lábios, os olhos desesperançosos de quem perdeu a batalha. Com um nó de preocupação entre os olhos, disse sim com um movimento leve de cabeça. Derrotado, fiz menção de curvar-me para beijá-la, mas ela já vinha em mina direção, com aquela boca e cabelos e pernas e peitos. Beijamos e, beijando, levantamos. Ali, em pé, ao lado da janela ficamos alguns instantes, o bastante para que minha mão deslizasse por aqui e por ali, cercando aquela mesma caverna que guardava o tesouro já conquistado, mas ainda não possuído. Surpreendi-me quando meus dedos trafegavam pela via principal, e não pelos acessos laterais, a falta daquele singelo tapete natural que estava ali ainda alguns dias atrás.
- Tu te preparou, né...
Ela sorriu e agarrou-me com força.
Uma porta abriu-se lá nos quartos. Nos afastamos depressa e, num clima indescritível, entrou a Gaúcha. Depois dos bom-dias, ela andou a preparar o seu café da manhã, enquanto a paulista encaminhou-se ao próprio quarto. Por minha vez, sente no sofá, fitando a TV, mas com a cabeça longe; vazia, na verdade. Passou alguns minutos, e então ouvi uma fechadura se trancar lá no corredor.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Parte Terceira

O beijo começou leve e carinhoso enquanto estávamos sentados junto a parede, mas depois acabei por deitá-la no chão forrado de carpete daquele corredor do último andar. Joguei meu corpo sobre o dela e começamos a nos beijar vorazmente. Eu tentava agarrar todas as partes daquele corpo ao mesmo tempo, enquanto ela apertava minhas costas, de modo a colar meu corpo no seu. Fiz uso das pernas para deixá-la ainda mais louca. Quando ela chegava num ponto de loucura, de me apertar vorazmente contra o próprio corpo, eu desacelerava. Voltava a beijá-la carinhosamente, acariciando seu cabelo. E então aumentava gradativamente o ritmo até chegar ao êxtase novamente. Numa dessas, ela jogou-me para o lado e se pôs em cima de mim, assumindo o controle de nosso descontrole. Minhas mãos passeavam de cá pra lá e então infiltraram-se no sutiã. Quando eu tinha tudo nas mãos, ela parou, levantou a cabeça e o corpo, permanecendo sentada/ajoelhada sobre mim.
- Para Gaúcho, ou eu vou transar com você aqui mesmo...
- Eu não to fazendo nada... - e sorri com inocência.
Ela fez uma negativa com a cabeça e deitou-se em cima de mim, beijando meu pescoço, afastando meu moletom para chegar ao ombro e todo e qualquer pedaço de pele que ela podia alcançar com a boca.
- Ai Gaúcho... - ela sussurrava aqui e ali.
Ficamos naquele esfrega-esfrega por alguns minutos, até que resolvi que era hora de descermos. Tomamos o elevador. Ela entrou primeiro, apertou o botão do terceiro andar e recostou-se ao lado dos botões. Eu entrei e posicionei me do outro lado. Estávamos frente-à-frente, separados por menos que meio metro pelo qual se podia enxergar o espelho.
Olhei meu reflexo. Cabelos bagunçados, moletom amarrotado. Dei um jeito no cabelo.
- Não pode desarrumar meu penteado assim - repreendi distraidamente.
- Gaúcho...
Quando terminei os reparos e voltei a recostar-me na parede do elevador, ela aproximou-se e pôs-se a ajeitar a gola da minha camiseta polo por sobre a gola V do moletom. Depois que terminou, como quem não quer nada, arriscou mais algumas investidas no pescoço. Subiu com a boca, procurando a minha, mas, ao chegar, encontrou apenas uma orelha. E, não se dando por vencida, mordiscou o lóbulo e, confesso, causou algum arrepio no meu couro. Deve ter percebido, pois recuou, com um meio-sorriso de garota se fazendo de difícil. Eu sorri um "entendi" e voltei-me pro espelho, colocando a gola de volta para dentro.
- Eu não uso assim. Todo mundo ia pensar que eu andei tirando a roupa...
- Seria bom se tivesse tirado.
- Talvez. A gente nunca vai saber.

Saímos do elevador e chegamos à porta do nosso apê. O cheiro de cebola estava naqueles corredores por anos e, depois de uma semana, já não incomoda mais tanto. Apartamento 17. Sempre adorei o tal dezessete. Não o apartamento, mas o número. Algo nele é bonito. Algo nele é ímpar, rá! Algo nele faz sentido, e é difícil explicar isso. Mas eu não tenho que explicar nada pra ninguém mesmo.
Entramos, mas não antes de ela tentar algo.
Ela foi ao banheiro e eu fui à sala. Olhei ao redor, silêncio. Recostei-me no sofá, mirando a noite escura pela janela. Cheiro de roupa lavada, que secava no varalzinho de armar. As outras gurias deviam já estar dormindo, ou transando lá no quarto que eu dividia com elas. Nah, não. Sorri sozinho.
Ela saiu do banheiro e parou na entrada da sala/cozinha.
- Você vem?
- O que o teu namorado ia pensar?
- Ele não tá aqui...
- Hm, mesmo assim. - Sorri.
- Boa noite, então?
- Boa noite.
- Ai, Gaúcho...
- Durma com os anjos.
Ela então saiu e eu a ouvi entrar no próprio quarto. Demorou um pouco para trancar a chave, porém. Eu era mais complicado do que eu pensava e era inútil ficar ali parado pensando no que eu eu fazia ou por que fazia. Era mais fácil escrever. Mais divertido, também. Mas, mais importante, é que dias ou meses ou anos depois eu iria ler e julgar. Talvez descobrir os porquês e tentar entender como se comportava o meu próprio ser. Lembrei das latas na geladeira. Abria a primeira enquanto o computador iniciava. Sentei, vendo que alguma claridade já começava a querer aparecer no horizonte, lá, além da janela. Tomei o primeiro gole e digitei as primeiras palavras, sem imaginar que ainda teria de escrever muitas outras.