"Até mesmo o silêncio é um texto."

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Sobre ver cara e ver coração.

Ainda deitado, largou o Hemingway sobre a cômoda. Estava já na metade. Devorava aquelas frases com velocidade, o que o fazia temer perder algum ponto interessante e oculto, justamente pela pressa. Era, entretanto, natural. Alguns livros foram feitos somente para serem relidos, servindo a primeira leitura como aperitivo que antecede a refeição.
Foi então que o viu.
Estava parado de pé, a fitá-lo com um sorriso verdadeiro, mas que possuía, notadamente, indícios de malícia.
- Não, presidente, hoje não quero papo contigo. Hoje não. Ontem nos excedemos e tu sabe o que acontece.
- Agora quer me evitar?
- Não é isso, tu bem sabe que sempre acabo te procurando...
- E eu acabo sempre te aceitando, imagina se eu fosse orgulhoso...
- Ah, não te finge de coitado. Tu também não é santo, tu apronta pra mim.
- Mesmo assim sou tua melhor companhia.
- Mesmo assim tu é.
- Até porque não tem mais ninguém por aqui.
- Obrigado por lembrar...
- Não te faz de coitado. Ficou enfurnado nesse quarto durante toda a semana, nem com teu irmão falou direito. Nem olhar nos olhos dele, olhou.
- Ah, ele entende. Ele sabe que preciso desse momentos introspectivos.
- Larga mão de ser retardado, fingindo essa melancolia que só serve à tua auto-piedade.
- Bah, hoje tu tá malvado!
- Bonzinho é que nunca fui. Agora, como tu é tão certo que teu irmão entende? Quando que tu falou sobre isso com ele?
- Nunca, isso não é assunto que se fale. Isso a gente sabe, a alma sente. Ainda mais que somos almas irmãs. Eu o compreendo e ele a mim e não precisamos de palavras dissimuladas pra enfeitar isso e tornar uma novela das oito.
- Isso não é verdade. Tu pensa assim pra te enganar, porque tu sabe é que tu não consegue ter essas conversas. Tem alguma coisa aí dentro, um tipo de fechadura que nem mesmo eu consigo abrir. E, em vez de tentar abrir essa porta, ou porteira, que libertaria teu coração dessa carapaça dura e espinhenta que afugenta quem te cerca; tu te conforma com esse pensamento de que ele entende, de que todos entendem e que é teu jeito de ser.
- Fica quieto! Tu tá aqui pra me fazer sentir melhor!
- Quem te disse isso?
- Tá, chega de me dar nos dedos... to ficando cada vez pior.
- E é disso que tu precisa. E é por isso que tu precisa de mim. Nada dessas desculpas de afastar o frio. Tu me precisa justamente pra te afundar, te jogar no chão com uma patada carinhosa, mas nem por isso menos dolorosa que qualquer outra. Aí tu te encolhe, como um feto abandonado pela mãe na sarjeta, com a única diferença que não chora. Essa armadura do teu coração te impede de rolar lágrimas, coisa que é tão natural e bonita, quanto necessária. Leva horas nesse estado deprimente, nesse sofrimento quase físico, pra depois levantar, limpar o casaco e seguir caminho, com essa cara ridiculamente dissimulada, como se nada tivesse acontecido e estivesse tudo bem.
- Mas é assim que é pra ser! Todo mundo esconde o seu sofrimento, isso é que é natural!
- Não desconversa. Eu to falando da tua incapacidade de libertar de verdade esses demônios. O teu sôfrego estertor de feto abandonado não se esgota, porque não termina em choro. Só lágrimas poderiam te trazer alívio verdadeiro. Só depois de um banho de lágrimas essas tuas bochechas sínicas serão capazes de sorrir com sinceridade e leveza. “É preciso paz pra poder sorrir”, diz a música, e essa paz - que não necessariamente se contrapõe à guerra - essa paz de espírito tu não a tens. Assim o é que é recorrente esse teu sofrimento exterior, que nem dá pra chamar de verdadeiro, porque é forçado. Tu força-te a isso na tentativa de dar fim ao teu desespero. E tu sabes que não acontece, não termina. Então tu te levantas com a cara deslavada, fingindo pra ti mesmo que está tudo bem, quando tua alma ainda permanece escura.
- Agora deu pra conjugar a segunda pessoa e usar os oblíquos adequados? Olha que vão te chamar de arrogante, ein. Ninguém gosta de alguém falando desse teu jeito esnobe...
- Essa tua ironia só vale porque eu sei do que tu tá falando. Mas tem gente que não vai achar graça. No máximo vai repetir esse teu sorriso sarcástico, com esses olhos afiados que são também dissimulados, na medida em que não são capazes de mostrar o sofrimento verdadeiro que os preenchem quando fechados.
- Tá, vai, continua batendo. To começando a concordar contigo que eu gosto mesmo de apanhar.
- Retardado, não é nada disso! O que digo é que tu esconde o teu verdadeiro ser por detrás dessa melancolia, auto-piedade, burrice, chama como quiser. Entende agora? É exatamente o contrário! Agora não adianta me perguntar porquê, que não sou doutor metido em mentes, principalmente como essa tua aí.
- Sim, tem coisas erradas na minha cabeça, acho que nunca vou conseguir consertar.
- Cala essa boca!! Parece que tu não ouve o que falo! Deixa de ser coitadinho uma vez na vida! “Ai, sou vítima do destino”, “ai, o mundo me fez assim”, “ai, a sociedade está afogada em estrume”, “ai, não adianta nem tentar”. O teu problema é assumir de uma vez o que tu sentes de verdade, sem essa cortina de ferro ridícula. Por trás desses olhos verdes que às vezes tu cobre com esses fiapos amarelados de cabelo - se achando o máximo - existe nada mais, nada menos que alguém com medo de viver... um covarde!
Os olhos verdes se arregalaram imediatamente.
- É isso, e tu sabes, covarde!
O cabelo eriçou-se de leve e as bochechas avermelharam.
- Covarde, covarde e covarde. Nada além de um covarde!
Irado, arremessou a garrafa contra o chão. O vidro escuro espatifou-se contra a lajota cor de neve. Estilhaços preencheram aquele piso até então límpido. O pouco conhaque que ainda havia ali dentro espalhou-se cuidadosamente, tingindo de cobre o mesmo chão ferido pelo vidro. Parecia sangue escorrendo, mas só parecia. O cheiro que impregnou o quarto era bem diferente. As palavras cessaram e, para espanto de alguém que não estava mais ali, gotas de outro líquido também pingaram naquele mesmo chão.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Bluebird - Charles Bukowski.

there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too tough for him,
I say, stay in there, I'm not going
to let anybody see
you.

there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I pour whiskey on him and inhale
cigarette smoke
and the whores and the bartenders
and the grocery clerks
never know that
he's
in there.
there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too tough for him,
I say,
stay down, do you want to mess
me up?
you want to screw up the
works?
you want to blow my book sales in
Europe?

there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too clever, I only let him out
at night sometimes
when everybody's asleep.
I say, I know that you're there,
so don't be
sad.
then I put him back,
but he's singing a little
in there, I haven't quite let him
die
and we sleep together like
that
with our
secret pact
and it's nice enough to
make a man
weep, but I don't
weep, do
you?

segunda-feira, 4 de julho de 2011

"There's nothing up their sleeve".

Inverno, mas sexta-feira. Sensação de zero graus celsius na rua, mas sexta-feira. Desceram do Gol equilibrando-se no meio de tantos casacos. As mãos geladas, mesmo assim. Se olhassem contra a luz, veriam milhares de ridículos pingos que não caíam, mas podia-se dizer que flutuavam pelo ar. Não era chuva, mas também não era neve. Garoa, digamos. Aquela garoa fina completava o cenário de uma horrível noite de inverno gaúcha. Na frente do bar, as mesas e as cadeiras estavam postas, à espera de clientes.
- Eaí seu Breno!
- Opa, gurizada! E esse veranico, ein? Acho que amanhã pego a Free-Way e me vou pra Mariluz tomar banho de mar.
- Hahah, mas leva casaquinho que de noite esfria...
- Hah, pode deixar. Pilsen?
- Pilsen. Dois.
Sentaram lá dentro, não na calçada. Loucura tinha limite, afinal de contas. O bar, vazio de gente. As garrafas gelando nas prateleiras. Algumas nos freezer, para atingir a temperatura ambiente. Do radinho de trás do balcão saía a voz do Pedro Ernesto, narrando Argentina e Bolívia. Da rua, não chegava barulho algum.
Os copos chegaram, repletos com moléculas disso, combinadas com moléculas daquilo, e o levedo e o mosto e a fermentação e o lúpulo e toda a ciência que havia por trás do líquido que entrava para depois sair tão inútil quanto entrou. O senhor proprietário-garçom-caixa voltou a sentar atrás do balcão, ao lado do radinho. Brindaram. Beberam e gemeram. Depois do pequeno ritual, começaram a trocar palavras sobre os causos do trabalho, da família, dos amigos. As matérias aprofundavam-se na medida que os copos esvaziavam, eram levados à chopeira e trazidos de volta, repletos do mesmo líquido. Já tinham bebido alguns, quando desembocaram naquele papo.
- É que, tu vê, né... suicídio não é uma coisa boa...
- Como assim?
- Não pra quem morre, claro, mas pra quem fica.
- Família?
- Sim, também, mas to falando de algo maior.
- Meu pênis é que não é, então...
- Hahah, não, claro que não. To falando do sistema como um todo. Daria até pra dizer a sobrevivência da espécie, mas aí já é viagem demais.
- Explica.
- Seu Breno, mais dois aqui. Assim, é mais ou menos o mesmo motivo pelo qual sempre tem que existir pobres. Imagina se todo mundo fosse, vamos dizer educado e rico. Quem ia varrer as ruas ou recolher o lixo? Quem ia limpar o banheiro dos bares e tal?
- Aham.
- Agora pensa, será que esse povo todo é feliz? Será que o cara que trabalha oito horas num subemprego de merda, depois perde mais algumas horas indo e voltando pra casa, que ganha uma merreca que mal dá pra alimentar a mulher gorda e as cinco crias... será que esse cara é feliz? Ele chega em casa e assiste a novela onde vê mulher gostosa com carrão, mansão, festas, badalação. Tem como esse cara ser feliz?
- Tu tá falando de ti ou é impressão minha?
- Talvez esteja, mas eu ainda tenho este chopp e uma boa companhia pra essas conversas que a gente sabe não vai resolver nada, não vai levar o mundo a lugar algum, mas pelo menos faz a gente sentir que entende como a roda gira e isso nos basta, por enquanto.
- Sim. Vamos ter essas conversas mesmo depois de ter ganhado na loteria.
- Talvez. Pô, tá frio aqui, ein...
- A mãe não mandou trazer casaquinho?
- Mandou, tá no carro. Mas não vou lá pegar... tá muito frio pra sair ali na rua.
- Faz sentido.
- Bom, dizia eu que a aritmética... hehe, não, dizia eu que esse pessoal é infeliz, só pode ser, porque leva uma vida de cão enquanto vê os outros aí, indo e vindo com seu luxo e seu sorriso no rosto e...
- Mesmo que seja sorriso de fluoxetina.
- Aham, e tá tão na moda, né? Pensei em comprar alguns pra tomar no café da manhã. "You work at a smile and you go for a ride".
- Essa é velha.
- Velha, mas boa.
- Vera Fischer.
- Melhor ainda.
- A Flávia Alessandra é a nova Vera Fischer.
- Concordo. Deusa. Ah, eu beijava ela toda, até o...
- Já sei, já sei. Continua com a história dos suicídios.
- Pera, deixa me recompor.
- ...
- Onde eu tava mesmo?
- Subemprego, homens infelizes...
- Sim, tá, aí esses locos levam uma vida de merda, miserável. Se eu tivesse nessa situação - e um dia eu posso tá mesmo - o que me impediria de, sei lá, meter uma bala na cabeça, ou uma corda no pescoço?
- Deus.
- Exato. Agora, porque deus é tão conveniente no nosso esquema de vida? Pensa numa greve. Tudo para, é um caos. Bom, só ver essa dos Correios uns dias atrás. Todo mundo enlouquecido porque uma das engrenagens parou. Agora, pensa uma greve permanente. Os trabalhadores não vão trabalhar mais, porque pensaram que não tem sentido se matar dia e noite pra viver como um cachorro e morrer com o mínimo de decência. Aí decidem morrer de uma vez, abreviar a coisa toda. Hoje não tá todo mundo com uma pressa horrível de viver? Então, que se viva mais depressa e que se morra duma vez. Aí deu, né. Sem ninguém pra meter a mão no grosso... levantar as paredes, botar tijolo a tijolo pra erguer os edifícios... bom, eu não sei o que ia acontecer. Não sei se o pessoal tiraria o Gucci, ou o Armani pra pegar no pesado. Mas uma coisa eu sei, a humanidade ia sobreviver.
- Vaso ruim não quebra.
- Ah, quanta saberdoria carregam os ditos populares, não é? Daí que eu comecei a pensar nisso nessa semana, quando não sei porque cargas d'água minha mãe comentou que não se noticia gente que se suicidou. Tu vê que fulano tacou cinquenta e tantas facadas noutro, que o cara incendiou a mulher por causa de ciúme... mas suicídio não aparece. Eu nunca tinha reparado. E aí a mãe mesmo disse, "pra não incentivar". E eu pensei, claro! O ser humano é a coisa mais ridícula quando se trata disso. Viu um fazendo, ah, é normal, vamos fazer também.
- Se um pula duma ponte, o outro faz também.
- Hoje tu tá o senhor sabedoria popular, einhô...
- Heheh.
- E é isso. Se o pessoal começa a se dar conta, não, melhor, a ver que os outros fazem, vão começar a pensar: "pô, o cara fez... por que eu não"?
- Isso também dá pra aplicar na putaria das gurias de hoje. Começo com o cinema, claro, os americanos expertos... meteram uma Marilyn Monroe toda vadia e o brasileiro começou a comprar a ideia. Hoje, claro, a ideia amadureceu e o hip hop e aqueles clipes pornôs tão fazendo a frente. Mas é isso, a menina é santa até ver a tv. Aí já fica um pouco safadinha, mas ainda tem uma certa noção. Mas aí chega na festinha e vê as amiguinhas de mão em mão, ou melhor, de boca em boca...
- De pau em pau, já dá pra dizer.
- Sim! E a gente adora!
- Mas claro!
Brindaram. Sem entusiasmo. Um brinde clássico.
- Concordo com teu papo sobre o suicídio. E essa coisa do jornal eu já sabia, mas nunca juntei os pontos. Legal lembrar disso agora.
- Pois é. Aí veio a igreja, muito sábia e muito malandrinha, e disse que quem se suicida vai pro inferno. Resolveu todos os problemas, mesmo que agora as pessoas já não sejam mais tão crentes e tal. Isso porque ficou o estigma. O falatório que dá quando alguém se mata. Os cochichos na família, nos vizinhos, né... sempre rola uma "culpa dos pais", é claro.
- Sempre pensei nisso. Olha bem, a gente não é cem porcento livre, mesmo pra se matar. Não que eu não consiga puxar um gatilho ou algo assim, mas uma coisa lá dentro fica dizendo: "bah, e quem fica"? O que as pessoas que gostam de mim vão ficar sentindo? Tu, eu sei que vai ficar orgulhoso e até com inveja, mas e a minha mãe, meu pai?
- Hahah... é, o cara tem essas correntes prendendo no mundo.
A conversa cessou por um tempo. Os copos foram reabastecidos. Um par de animados casais entrou e sentou na mesa ao lado. Também pediram o mesmo chopp. Não tiveram assunto que chegasse perto da profundidade da vida ou dos sentimentos. Os quatro falavam muita bobagem, é verdade, e riam como bobos.
Os dois permaneceram ali, ouvindo os casais. Eventualmente, trocavam olhares e sorriam de canto. Então levantavam o copo e bebiam um gole ressentido, tentando preencher o vazio de seus próprios corpos. O pior de tudo era saber que a felicidade era fácil.