"Até mesmo o silêncio é um texto."

domingo, 25 de janeiro de 2009

Duas vezes você.

Eu tinha bebido mais de um litro já. O bar ao meu redor fervia de animação, entusiasmo e gente e mais gente. Corri ao banheiro, eu tinha que me aliviar urgentemente. Tinha segurado o máximo e agora eu calculava se ia ter mais de dez ou menos de dez caras na fila. Entrei porta adentro.

O banheiro estava maior do que o normal. Estava com as paredes vermelhas. As pias alongavam-se na parede da esquerda, com um espelho enorme. Os mictórios ficavam à direita. Lá no fundo, duas casinhas com vasinhos. Percebi um cara num dos mictórios, e outro a pentear os cabelos recém molhados. Olhei através do espelho para o rosto dele. Era eu quem estava ali.

Cheguei mais perto, analisando suas roupas de branco impecável, camisa abotoada, relógio dourado e um óculos supermoderno. Usava sapatos do tipo que tem fivela de metal. Fiquei ao seu lado e fitei o seu rosto. Sua inteligência madura dizia que era mais velho que eu por alguns anos. Os olhos eram de um azul límpido, mas convicto. A pele resplandecia lisamente sem nenhum pelo. Seus cabelos brilhavam a luz amarelada do teto. Ele não sorria, mas seu rosto era alegre, nenhuma marca de sofrimento. Ou seria a lividez de um rosto que já muito sofrera? Não sei se vi direito, mas do bolso da camisa saltava um diploma. Ele terminou com o cabelo, olhou para mim tranqüilo, com o olhar atencioso daqueles que sabem que o outro precisa de alguma palavra exata.

- Garoto, o mundo pode parecer horrível às vezes, mas essa é uma impressão errônea e pontual. Pode não parecer, mas tudo isso que você está passando vai terminar em algo muito melhor!

Então aquele meu “eu” mais velho sorriu, ajeitou a gola e saiu caminhando tranqüilamente.


Nisso, veio limpar-se o outro cara, que estava no mictório. Seu andar era pesado e esnobe. Calçava os mesmos tênis que eu. Camisa preta meio surrada e calças jeans desbotadas. Olhei para o seu rosto. Por entre a barba espessa, vi outro de mim. Ele era ainda mais velho que o outro.

Este tinha os olhos turvos. Olhou-me como a perguntar o que eu queria, por que o estava encarando. Sorriu com desprezo e foi lavar as mãos. Ficou muito tempo naquele trabalho, e eu não tirei os olhos de cima. Parecia distante, compenetrado ao extremo para formar alguma frase difícil. Os cabelos eram revoltos. Um brinco de vidro na sua orelha esquerda reluziu.

Finalmente, fechou a torneira. Olhou com inveja para mim.

- Guri, não fique com esperança numa frase com reticências. Entenda-as como um não. Difícil é; eu que sei. Eu não fiz isso e agüento até hoje. Se eu tivesse me concentrado em estudar ou qualquer outra coisa que não fosse ela, esse brinco hoje seria de diamante.

Sua voz saíra rouca e com odor de cigarro. Ficou olhando por sobre mim algum tempo. Em seguida, saiu trôpego pela porta. Os olhos dele tinham um brilho estranho. Ele tinha esquecido a braguilha aberta.

Estava eu ali, sozinho no banheiro vermelho, confuso. Aquilo tinha mesmo acontecido? Eu bebera bastante, mas não o bastante pra aquilo. Sacudi a cabeça para afastar os pensamentos distorcidos. Pensei nela.

Sacudi a cabeça mais uma vez, e fui até um dos vasinhos me aliviar.



18/10/08