"Até mesmo o silêncio é um texto."

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Estar ou não estar, eis a questão.

Estava agora mesmo no chuveiro, que - assim como o vaso - é berço de grandes ideias e pensamenos profundos. Enquanto ensaboava o suvaco, pensava nas mil pequenas coisas que tenho que fazer. Umas são mais urgentes, outras nem tanto, mas sempre acabo priorizando as últimas. Por exemplo escrever um post inútil que vai ser lido por meia dúzia - se muito! - em vez de fazer todas aquelas outras coisas muito mais urgentes que mencionei. Azar, eu to com vontade de escrever, e gosto de satisfazer as minhas vontades.
Eu pensava precisamente numa papelada que tenho que enviar pro Toninho. Aí alguns neurônios resolveram se ligar e trocar uma ideia e eu acabei voltando alguns meses no tempo. Éramos ele e eu, no Uno, em algum ponto entre Novo Hamburgo e Santa Maria. Eu dirigia sob um céu nublado e ele, sentado no carona, fiscalizava cada milímetro dos meus movimentos como motorista. Não estava acostumado a ser "dirigido" e isso o incomodava. Aqui e ali, eu encostava na bunda de um caminhão e ultrapassava com o pé no fundo. O Toninho reinava, e eu retrucava qualquer coisa sobre sua idade avançada, ou alfinetava a própria insegurança de não estar no comando. Ele era obrigado a sorrir. E que sorriso fascinante! Nem para a mais engraçada das piadas ele perderá as rugas, ou melhor, linhas de expressão, que habitam o espaço entre suas sobrancelhas negras desde o tempo em que assumiu sua cara-de-sempre. Um tipo de máscara de carne, carrancuda, séria, do tipo que duvida de tudo e de todos; do tipo que tá pronta para a briga. O sorriso é sincero, a boca e os olhos não negam, mas a inqusidora expressão das sobrancelhas está lá, não cai.
Não lembro o que conversávamos. Provavelmente eu tentava arrancar alguma história do seu passado, tentando driblar a suas evasivas. Quem conhece o Toninho sabe do que falo. Não é homem de muitas palavras, muito menos o tipo de pai sábio que dá conselhos tirados de algum livro do Paulo Coelho. Mas foi que, no meio de uma dessas histórias que consegui extrair com esforço, ele diz, enquanto mira a estrada e guarda uma garrafa de suco de laranja no porta-luvas:
- Tem que aprender a ficar sozinho.
E, naquele momento, ele perdeu toda a minha atenção. Depois daquelas palavras, tudo o que eu soltava eram monossílabos positivos, concordantes com o que quiser que estivesse saindo de sua boca. As palavras ecoaram bonito dentro da minha cabeça, e continuaram a ecoar num vaivém que demorou alguns minutos a cessar. Aquela frase foi forte. Entretanto, perigosa, se dita sem contexto. Ele não se referia a viver sozinho, isolado numa cabana no meio do nada, tampouco a ser um solteirão anti-casamento - ele mesmo já se casou, pelo menos, umas cinco vezes! O que ele dizia é que é preciso saber viver aquele dia de folga em que todo mundo está trabalhando, ou aquele domingo em que ninguém está na cidade. Não enlouquecer por não ter ninguém ao redor, não mendigar atenção e por aí vai.
Meses passaram e eu continuo dando esporádica atenção àquele pensamento. Já fui longe com a questão, chegando a extrair alguns sentidos a mais, tipo estar sozinho é estar consigo mesmo e, portanto, saber estar sozinho e saber estar consigo mesmo; é se conhecer.
Porém, os já ditos neurônios fizeram outras ligações e me trouxeram de volta a um presente mais recente. Em fevereiro, conheci esse rapaz, o Lucindo, que estava envolvido com a amiga da Mariana, minha vizinha de quarto. Gaúcho de Uruguaiana, baixinho, chegou com uma cuia na mão e fazendo piada do Colorado, já que tinha visto o símbolo do campeão de tudo bordado nas minhas calças. Não entendi. Foi um daqueles comentários que não dava pra saber se estava sendo sarcástico, ainda mais porque eu não lembrava que havia um símbolo na minha calça, e fiquei pensando como que ele saberia pra qual time eu torcia. Mas tudo bem, passados os segundos embaraçosos em que ele teve que explicar a piada, a conversa seguiu bem regada a mate. Naquela tarde, descobri que era um quarentão - daquele tamainho - formado em turismo, tinha trabalhado na Feevale e agora trabalhava na cozinha de um restaurante, lavando pratos. À noite, íamos todos à despedida da Mariana num pub do centro da cidade. Sendo assim, ofereci a minha Sparkling Ale para degustação. Ele interessou-se pelo meu equipamento, que eu colocaria à venda assim que terminasse o próximo lote de cerveja, para o qual estava esperando os ingredientes chegarem pelo correio. Disse-lhe o preço e mais ou menos expliquei como era o processo. Mostrou-se definitivamente interessado na compra, e combinei que chamá-lo-ia para acompanhar o processo, quando estivesse produzindo o próximo lote.
Assim o fiz. Numa quinta-feira feia, choviscando, ele tocou a campainha de casa. Abri e ele entrou com a bicicleta molhada pela sala de estar, pela cozinha e finalmente estacionou-a no pequeno pátio atrás de casa. Era por volta de duas da tarde, quando nos abancamos na cozinha e preparamos um mate. Comecei em seguida os trabalhos. Parecia um video de "how to" desses do youtube. Enfim terminamos e almoçamos um bolinho de carne que ele trouxera. Continuamos a papear. Já era três, três e meia e o rapaz falava e falava e nada de se mexer pra ir embora. Comecei a responder em monossílabos. Dos monossílabos, passei a grunhidos. Depois peguei o celular e fiquei fuçando descaradamente, enquanto ele dizia umas asneiras meio racistas sobre gaúchos e nordestinos. Sim, porque ele se considerava um vencedor na vida, dê certo; quarentão, lavando pratos num restaurante, contribuindo uma barbaridade para o desenvolvimento da nação. O pior é que a chuva não dava trégua, e mesmo eu de saco cheio ainda tinha certo discernimento pra não mandar o cara embora embaixo d'água. Mas ele continuava falando com aquele tom de quem entende tudo e até o seu sotaque de Uruguaiana começou a incomodar. Fiquei no celular, grunhindo, considerando-me uma pessoa horrível, embora de saco cheio o bastante pra perdoar a mim mesmo. Finalmente, ele se tocou, lá pelas quatro passadas.
- Bom, acho que vou tomando meu rumo...
Hesitei alguns segundos antes de dizer "a pressa é tua..." Vai que ele decidia ficar mais um pouco. Felizmente, não, e fechei a porta deixando ele e sua bicicleta do lado de fora, embaixo de uma chuva fina. Não sem antes, combinarmos de sair pra uma cerveja "uma hora dessas". É claro que essa hora nunca chegou. Ao virar a chave, senti um alívio parecido com aquele depois de despachar aquela bosta dura, que te sai do rabo arranhando, depois de fazer muita força.
A moral da história então é que o Toninho só falou metade da lição. Tem que aprender a estar sozinho, sim; mas também tem que aprender a estar com os outros, coisa muito mais difícil.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Epílogo.

Eu já estava almoçando quando ela levantou e veio até a sala. Recebi-a com aquele tipo de sorriso que não é tanto da boca, mas mais dos olhos.
- Não fala nada!
- Eu não me atreveria.
Sentou no sofá. A dor de cabeça era visível. Não lembrava de muita coisa da noite anterior.
- Eu ia ficar impressionado se tu lembrasse...
- Lembro de ter beijado na boca, mas não é memória normal. Eu não consigo visualizar, só lembro da sensação do beijo. Você me beijou?
- ...
- Sério que não?
Um certo pavor trespassou pela face inchada de trago.
Sorri.
- Beijamos, sim.
- Ai que susto! Já achei que tinha beijado uma das meninas...
- Só isso que tu lembra?
- Só... por quê? Teve mais??
- Não. Não que eu tenha visto.

Quando o dito namorado chegou de Londres, eu estava largado no sofá de frente à TV, com o laptop no colo. Meu cérebro ordenava um "age normalmente" repetitivo e, de certa forma, nervoso. Não era medo. Na verdade, era sim. Não medo físico, entretanto. Era um medo emocional, se é que isso não é pleonasmo. Podia me defender muito bem numa briga de socos, mas era do stress da discussão e o clima pesado que permaneceria ali pra sempre que me assustava. A guria era louca o bastante pra ter relatado tudo pro cara, disso eu não duvidava.
Ele veio até mim. Apertamos as mãos. Contato visual. Sem sorrisinhos falsos, mas também não antipático. Pelo menos é isso que penso que transpareceu.
Poucos dias depois eu mudei de casa. Não por causa dos fatos ocorridos, porém. Alugara o quarto por um mês e o prazo esgotou-se.
Só a vi uma vez mais. Durante o trabalho.
Era qualquer coisa entre cinco e seis da tarde. Eu arruma alguns sapatos nas estantes. Terminei e encaminhei-me para outra estante e, no caminho, havia alguns pares jogados no chão. Abaixei e os peguei. Na subida, meus olhos deram de encontro com os dela, que vinha caminhando na minha direção. Não sei como nem porque, mas antes que meu cérebro desse em si de quem era, a cabeça já tinha virado de súbito, os meus olhos já tinham fugido e os braços já levantavam prontos pra trabalhar. Um segundo e ela passava por detrás das minhas costas, que temerosas esperavam um toque e um "eaí, vai fingir que não me viu?"
Mas não. Não houve toque, nem um "oi" irritado nem nada. Respirei e, mais calmo, pensei, indignado:
"Fazida..."

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Final

Pra ser sincero, não lembro quando exatamente foi a terceira noite. Talvez já no dia próximo, talvez no outro final de semana. Quebrei a cabeça tentando recordar, mas já me é impossível. Faz mais sentido pensar que foi no final de semana, pois todas as meninas participaram.
Então que naquela noite a boa era caipirinha. Limão, açúcar e vodka. As melhores coisas da vida são também as mais simples, dizem. Nossa amiga Paulista bebia como fosse água, e nossa amiga Gaúcha esquentava minha orelha mais uma vez com aquela conversa de "eu não vou cuidar de bêbado", ao que eu replicava um sorridente "não te preocupa" enquanto levava o copo cheio para a gente sabe quem. À noite foi indo com várias risadas e copos indo e vindo, cada vez com menos limão, cada vez com mais vodka.
Até que a Paulista surtou.
- Eu vou ligar pro Vítor!
- Não, você tá louca, não - retrucava a curitibana, num desespero tão preocupado que parecia simulação. A voz semi-ofegante e os olhinhos brilhando, alcoolicamente umedecidos.
- Eu preciso, cadê meu telefone??
Eu de pé, encostado à pia, com o copo à mão, sorria de leve. Entretanto, uma das minhas sobrancelhas começava a alçar-se...
- Não, Paulista, você tá bêbada, meu!
Ela levantou-se, visivelmente inebriada, à procura do telefone.
- Não, meu, não faz isso!
Também falou a Gaúcha:
- Para, Paulista. Tu não tá em condições de falar com o Vítor. Se tu ligar pra ele assim, tu só vai piorar as coisas.
Ela olhava pra cá e pra lá, procurando o telefone, que a Curitibana já havia pego.
- Por favor, eu tenho que ligar pra ele - e agora era quase um leve choro.
Puxei uma cadeira até onde ela estava.
- Senta aqui e te acalma.
- Isso, senta ali que vou pegar um copo d'água pra ti...
Bebeu um gole e botou de lado. Então, de supetão, levantou da cadeira e foi em direção ao precioso telefone. Não consigo pegá-lo, contudo. A outra menina foi mais ligeira. Peguei-a pela cintura e trouxe de volta à cadeira.
- Tu tem consciência que o que quiser que tu diga pra ele, vai transparecer que tu tá alterada e andou bebendo? Não tem como isso ser uma boa ideia.
Tudo chegou a um ponto em que eu, posicionado atrás dela, segurava gentilmente seus braços contra os da cadeira, enquanto ela murmurava que a Curitibana ia roubar o telefone dela. Eu a acalmava e fazia pouco das coisas ridículas que ela falava.
A certa altura, reparei que as duas outras se tinham retirado e cochichavam lá na porta de entrada. Cheguei meu rosto perto do dela e delicadamente trouxe seu queixo em minha direção. Era eu debruçado sobre o encosto da cadeira onde ela sentava e virava o pescoço, de forma que as duas bocas pudessem se encontrar. Beijamos por segundos, até que percebi que as duas caminhavam pelo corredor, vindo em nossa direção.

Não lembro o que aconteceu depois. Ela certamente se foi acalmando à medida que o àlcool foi deixando o cérebro. A única memória que tenho depois daquele beijo é de estar recostado no corredor em frente à porta do banheiro, onde ela estava. A impressão que tenho é de estar cuidando dela, enquanto as outras meninas tinham desaparecido. Estavam dormindo, provavelmente. Esperava ela sair porque visivelmente passava mal e só a deixara entrar depois de me prometer que não trancaria a porta.
Demorava a sair.
Bati na porta. Ninguém respondeu. Tentei novamente. Mais uma vez as batidas ecoaram pelo silencioso corredor. Entrei no banheiro.
Encontrei-a deitada de bruços na lajota fria do banheiro. Olhos fechados, boca semi-aberta. Um bocado de baba/vômito no chão perto do rosto. Um pedaço de papel higiênico, também. Acordei-a e a ajudei a levantar.
- Lava o rosto.
Ela resmungou qualquer coisa.
- Quê?
- Para...
- Lava logo eu vou te levar pra cama.
- Para, não quero que você me veja assim...
Abriu a torneira e lavava o rosto, enquanto eu dizia:
- Deixa de besteira, todo mundo já teve seus dias de porre e dormiu no banheiro...
Virou o rosto molhado pra me fitar.
- Você já?
Sorri.
- Não. Mas é normal...
- Ai, que vergonha.
Secou-se.
- Vem, vamos, vou te colocar na cama.
Ela virou-se e pude ver a blusa úmida de algo que eu não sabia - e nem queria saber - o que era. Segurei-a pela cintura e guiei-a pelos três ou quatro metros que separavam a porta do banheiro da do quarto.
- Tu não precisa fazer isso... Não precisa me cuidar... Por que tá fazendo isso... - a voz dela vibrava sonolenta e manhosa.
- Todo mundo precisa de ajuda, uma hora ou outra.
Chegamos à beirada da cama do casal que, na verdade, eram duas camadas de solteiro ajuntadas.
- Tira a blusa, tá toda molhada. Eu te ajudo.
- Não! Não quero que tu me veja nua...
"Ah tá..." pensei.
- Tudo bem, então tira tu mesma.
De costas pra mim, tirou rapidamente a blusa e atirou-se na cama.
- Por que tá fazendo isso... - ainda murmurou sonolenta.
- Boa noite.
- Boa noite...
Virei-me e apaguei a luz. Segurei a maçaneta da porta com minha mão direita e dei um passo à frente. Ia puxar a porta, quando a ouvi dizer, claramente, embora a voz tivesse saído abafada pelo travesseiro no qual ela afundara a cara:
- Eu te amo!

Congelei por meio segundo. O braço esticado, a mão na maçaneta. As pernas abertas e o tronco levemente inclinado à frente, ainda esperando para terminar o movimento de saída. As palavras ecoaram em meus ouvidos. Pensei no que aquilo significava.
Suspirei pesadamente e saí, fechando a porta atrás de mim.