"Até mesmo o silêncio é um texto."

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

A necessidade da legalização do aborto.

No período eleitoral que estamos vivenciando, um dos assuntos que tomou lugar frente aos holofotes foi a legalização do aborto. Embora vivamos em um estado laico - onde não há envolvimento direto entre estado e religião - o tópico foi explorado de forma a prejudicar um ou outro candidato perante uma população que vive sob uma fé baseada na punição dos pecados. Tanto um quanto outro candidato mostrou-se contra a legalização, evidenciando que nenhum dos dois tem os olhos abertos para a realidade do país em que vive.
Antes de qualquer coisa, tomemos conhecimento e que pelo menos três milhões de mulheres no Brasil praticam o aborto de forma ilegal (Correio do Brasil, em 9/10/2010), em ambientes não-propícios ou de forma caseira. Além disso, se olharmos para como esta questão é abordada no mundo, veremos que a maioria da população mundial tem permissão para o aborto (aproximadamente 97 países, com cerca de 66% da população mundial, têm leis que permitem o aborto induzido. 93 países, com cerca de 34% da população, proíbem o aborto ou permitem o aborto apenas em situações especiais. Em: www.johnstonsarchive.net) A mesma pesquisa constatou que 93% dos abortos nos Estados Unidos são realizados por razões sociais.
Os argumentos em contrário, em sua maioria de procedência religiosa ou teológica, defendem que o aborto seria crime contra a vida, que se estaria tirando a vida de um ser humano.
A ilegalidade da prática abortiva força mulheres a procurar “médicos” clandestinos que o fazem por dinheiro e sem preocupação séria com a saúde da “paciente”, ou então a buscar métodos caseiros. Todos esses podendo deixar sequelas definitivas no corpo da mulher, ou, em última estância, levá-la à morte.
Países desenvolvidos, como os EUA e a maioria dos países europeus, dentre estes incluídos o Reino Unido, França, Alemanha, Itália e Turquia, além de países em desenvolvimento como Índia e o notadamente Católico México já entenderam que o aborto precisa ser legalizado, de forma a proteger a mulher e possível criança. Como assim proteger a criança que não nascerá? 93% dos abortos nos EUA são feitos por razões sociais: gravidez indesejada ou economicamente inviável. Que amor e cuidado terão os pais por uma criança indesejada? Em que tipo de lar viverá esta criança? Provavelmente, se não largada em um orfanato já entupido, habitará um lar que não a deseja e não a tratará como parte integrante, crescendo com sérios problemas psicológicos. As que são economicamente inviáveis, como se pode imaginar, nascerão para passar fome ou outros tipos de necessidades, inclusive de instrução, educação. Crescerão à margem da sociedade e, em muitos casos, serão recrutados pelo crime.
Isso já evidencia o quão deturpada é a voz de quem diz que o aborto é contra a vida. Para a mulher, ele pode ser sim: se praticado da forma ilegal que tem sido feito. Para a criança, o que parece mais cruel: preservá-la de vir a um mundo que não a quer, ou nascer para sofrer com necessidades primeiras como comida e roupas, e até mesmo com a falta do imprescindível amor do seio familiar? O questionamento responde-se por si, acredito.
Diante disso, não há como negar a importância da descriminalização do aborto, realidade que, às vezes, uma fé cega e surda a outras opiniões não deixa perceber. A prática deve ser regulada para que poupemos mulheres das mãos de negligentes “aborteiros” e para que poupemos crianças inocentes de virem a um mundo que não as quer e que raramente lhes dará outro caminho senão o abandono, o desamor e a tristeza.

sábado, 2 de outubro de 2010

Luis Fernando Veríssimo - textos.

O meu bruxo Luis Fernando Veríssimo é um cara gordinho e fofinho e muito inteligente. Vou copiar e colar aqui, em forma de plágio auto-declarado, um dos contos mais engraçados que já li. Este é de Ed Mort e o que me faz reverenciá-lo, este mais do que outros, é a sublimidade do humor. Uma piada apareceu para mim a cada releitura e isso evidencia a riqueza de suas ironias.


Ed Mort vai longe - Luis F. Veríssimo (In: Veríssimo, Luis F. Ed Mort e outras histórias. Edição Círculo do Livro, sem data)

"Mort. Ed Mort. Detetive particular. É o que está escrito na plaqueta. Meu escritório fica numa galeria de Copacabana. Entre um fotógrafo que anuncia “Fazemos os maiores 3 x 4 da praça” e uma escola de cabeleireiros. Lugar perigoso. Aqui ninguém diz mais “Isto é um assalto”. Diz “É outro”. O número de baratas na minha sala aumentou. Deve ser o êxodo rural. Elas agora me proibiram de entrar na sala. Fico ao lado de fora para interceptar a clientela. Fui assaltado cinco vezes em vinte minutos. Sempre pela mesma pessoa. Toninho “Mau Fisionomista” Aguiar. No fim ele me marcou com um “x” na testa para não se enganar mais. Com canivete. Mort. Ed Mort. Está na plaqueta.
Eu estava lendo meu jornal favorito ― o JB de 22 de dezembro de 1976 ― encostado na porta, quando a avistei. Custei a acreditar que aquilo que ela estava fazendo com o corpo se chamava caminhar. Tinha os seios como eu gosto, um de cada lado. Os cabelos soltos ondulavam ao vento. O que era estranho, porque não estava ventando. Boca carnuda, e a carne era de primeira. Vinha na minha direção. Despi-a, lentamente, com os olhos. Estava tendo um pouco de dificuldade com o feixe do sutiã quando ela parou na minha frente. Exclamou:
― É você!
Com a surpresa, atirei a cabeça para trás e quebrei a plaqueta. Depois, recuperei minha presença de espírito. Com alguma astúcia, respondi:
― Depende.
― Disseram-me que ele teria uma marca na testa. Então era isso.
― Ele quem?
― Você não sabe quem você é?
― Não sei se eu sou quem você pensa que eu penso que você pensa que que eu sou.
― Isso não faz sentido.
― Eu não escrevo os diálogos, boneca. Só estou no mundo pelo cachê. O que é que uma moça como você faz numa galeria como esta, além de tirar a minha respiração?
― Estou procurando um detetive particular. Mort. Ed Mort.
― Um bacana? Sorri para o lado? Alguma coisa do Alain Delon depois de um tratamento com hormônios? Duro, mas sentimental e algo filosófico?
― Não sei. Não o conheço.
― Deve ser ele. Não está. Vamos tomar um drinque!
Ela começou a recusar, mas olhou para o “x” na minha testa e resolveu me seguir. Fomos até a lanchonete onde, um mês antes, um fiscal da Saúde Pública provara um ovo duro e caíra morto sobre o balcão. O fiscal continuava lá. O cheiro da fritura disfarçava o cheiro do cadáver. Isso não era problema. Mas o fiscal e Toninho “Mau Fisionomista” Aguiar ocupavam as duas únicas banquetas vagas. Toninho levantou-se, cavalheirescamente, para assaltar minha acompanhante mas eu fiz sinal que ela estava comigo e ele sentou outra vez. Ela pediu um Alexander e eu pedi um Martini doce, para impressionar. O português nos serviu dois lisos de uma garrafa com uma cobra dentro. Mort. Ed Mort. Estava na plaqueta.
Ela me contou sua história. Igual a muitas outras. O marido desaparecera. Ela procurara ajuda com a líder da sua seita.
― Seita?
― A Nova Igreja do Jesus Baiano.
― Continue.
― Nós dois pertencemos a mesma seita. Outro dia, ele foi ter uma entrevista particular com a nossa líder. Nunca mais o vi.
― Como se chama a líder?
― Gioconda, a Sereia do Inamps.
― Nome estranho.
― Ela era funcionária do Inamps. Um dia teve uma visão. Pulou o balcão e saiu correndo do posto. Disse que recebera ordens do alto para esperar a chegada do Jesus Baiano. A fila foi atrás dela e fundaram a seita. Passam o dia inteiro na rodoviária, cuidando da chegada dos ônibus do Norte.
― Por que seu marido foi se entrevistar com ela?
― Logo depois que entramos para a seita ele recebeu uma herança enorme. Uma fortuna. Achou que era um sinal. Foi falar com ela.
― Depois que ele desapareceu, você a procurou?
― Procurei. Ela disse que não sabia de nada. Aí fechou os olhos e teve uma visão. Me mandou procurar pela cidade um homem com uma cruz na testa. Disse que ele me levaria ao meu marido. Não encontrei ninguém com uma cruz na testa e aí vi o seu anúncio no jornal. Mort. Ed Mort. Detetive particular.
― Estava na plaqueta. E então você me viu com uma cruz na testa...
― Você é o homem que a nossa líder falou?
O bar do português é o único lugar da galeria que não tem ratos. Estão em greve contra a má qualidade da comida. Tomei um gole de cachaça para pensar. O estômago quis devolver a cachaça mas o esôfago se recusou a dar passagem de volta. Onde é que eu estava me metendo? Mas não podia recusar nada àquele anjo. Devia ter desconfiado quando ela tomou a cachaça de um gole só e ainda se lambeu. Falei:
― Sou o homem que você procurava. Siga-me.
Fomos até a rodoviária. A Nova Igreja do Jesus Baiano estava reunida em torno da sua líder. Minha cliente tinha me contado que todos eram obrigados a dar dinheiro à líder para entregar ao Jesus Baiano quando ele desembarcasse do ônibus. Saltei no meio do grupo e gritei: “Cheguei!”.
― Quem é você? ― perguntou a Sereia do Inamps, desconfiada.
― Sou o Jesus Baiano! Cheguei de avião.
Todos se prostraram no chão. A Sereia do Inamps me puxou para um lado e quis saber: “Qualé?” Propus um acordo. Eu não estragaria o seu pequeno negócio se ela devolvesse o marido da minha cliente. Intacto, sem nem um cruzeiro a menos. Ela pensou um pouco e depois concordou. Deu um endereço onde ele poderia ser encontrado. Na certa de robe-de-chambre e aparando as unhas, o safado. Levei minha cliente lá, depois de anunciar à seita que tinha havido um engano. O verdadeiro Jesus Baiano chegaria pelo ônibus noturno.
Marido e mulher se reencontraram. Ele se explicou e ela o perdoou. Só não perdoou a mim por ter-me feito passar por outro. Não quis me pagar e ainda ameaçou me bater. Estou de volta na galeria. As baratas não deixam eu entrar na minha sala. Alguém chegou por trás e me encostou uma faca nas costas.
― Passa toda a grana.
― Sou eu, Toninho! Mort. Ed Mort. Onde diabo está a plaqueta?"