"Até mesmo o silêncio é um texto."

terça-feira, 24 de maio de 2011

Constância.

O sol ainda iluminava o topo dos edifícios mais altos. O ar entrava frio pelas narinas, para sair quente, logo depois, pela boca já ressecada. Assim ele passava correndo ao lado das grades que protegiam a obra ao longo do arroio. Cheiro de barro no ar. Havia chovido durante o início da tarde e, por isso, alguma água alaranjada ainda estava acumulada perto do meio-fio. Os carros andavam devagar, em fila única, já que a obra ocupava metade da pista. E a fila era grande. Alguns voltavam aos seus recantos, alguns iam aos estudos, alguns à cerveja. Era um joguinho interessante adivinhar aonde iam todos aqueles carros que passavam contra ele. Podia visar o rosto de alguns, embora escurecesse depressa. "Aquela tia ali, no seu Picanto, vai pra academia malhar e ficar em forma. Não pro maridão, claro. Pra algum outro que já tenha, ou que ainda deseja encontrar." O magro rapaz que vem em cima da bicicleta, com a mochila pequena nas costas e o meião até os joelhos era fácil: futebol com os amigos. Ou com o pessoal do trabalho. Depois, cerveja, talvez. Dentro do Corolla que arrastava-se silencioso, mantendo distância mais que prudente do Chevette a sua frente, o homem de meia-idade, com os olhos sumidos, dirigia-se para um lar frio. Mais frio que a rua. Podia ser o maridão da tia da academia. Cada um com seu carro, para evitar muito contato.


De repente, desiste. Não da corrida: os pés continuam firmes, um à frente do outro, no ritmo cadenciado, controlado; máquina precisa. Desiste do joguinho. Aquela altura da vida, perdera a graça todo aquele observa-pondera-apreende-define.


Um dos fones cai do ouvido. Sem parar ou decrescer o ritmo, ajeita-o com cuidado no ouvido direito e isso o faz prestar atenção na música. Kenny G. Que péssima ideia. Não é música de correr. Tateia o bolso e procura o botão que troca as faixas do mp3. É hora de fazer a curva, entrar na Frederico. O cheiro de barro é substituído pelo aroma de orégano da pizzaria em frente ao posto de gasolina. Quem come pizza às cinco da tarde? Pensando bem, não é má ideia. Lembrou que tinha estômago e, este, lembrou que tinha fome. Mas nada de apressar o passo. O importante é constância. Finalmente encontrou trilha sonora apropriada para o momento. Tinha de lembrar de sacar o Kenny dessa lista. "Nada pessoal, Kenny, tu me serves a outros propósitos."


Havia mais carros enfileirados diante da sinaleira, ansiosos para entrarem na fila que já deixara para trás. A vida em sociedade consiste nisso de pular de fila em fila. E a fila anda, para alguns mais rápido, para outros nem tanto. Mas anda, ora ou outra, anda.


A Frederico é uma rua que desemboca na BR. Por conta disso ela começa um aclive sensível, mas notável, principalmente para quem está correndo há certo tempo. Era sempre por ali que ele lembrava que o que estava fazendo era exercício físico. Começava a doer. Ultimamente doía menos, mas doía. Doeria sempre? Ou chegaria um momento em que simplesmente se esqueceria que havia pernas e movimento e atrito? Não sabia, mas continuava correndo. O importante é constância.


Estava chegando à esquina do outro posto de gasolina e da sinaleira, onde mais uma curva à esquerda o esperava. Essa caracterizava o início do retorno, a volta ao lar. Era também o trecho mais penoso. Por ali, de carro em carro, um vendedor de flores, iluminado já pelos postes e faróis. Os buquês, com cinco ou seis peças, enroladas em cones papel pardo, estavam seguros pelo braço direito. Debaixo do boné azul com a inscrição de um nome político e seu número, os olhos miúdos espreitavam os condutores, esperando qualquer aceno afirmativo, seja de mão, seja de cabeça. Não acontecendo, retornava à sua base junto ao canteiro do posto de gasolina, onde outras flores repousavam em um caixote de madeira.


Mantendo o ritmo, o rapaz que corria chegou finalmente à esquina-canteiro-floricultura. Mirou os olhos miúdos e cansados do vendedor e tentou não pensar no assunto. Mas, por causa disso, não reparou em um botão de rosa vermelha que estava caído ali na calçada, provavelmente um botão que fugira daquela vida vazia de ser flor ornamental, sem valor senão pela beleza. Vida com final marcado pela queda das pétalas, pela opacidade da cor, pelo inodoro do cheiro. Desatento, o corredor pisoteou a rosa. Esgaçou-a, rasgando pétalas que ainda nem haviam aflorado. Misturou a essência do perfume com o úmido impuro da calçada, transformando a bela cor uniforme em borrão modernista.


Porém, não parou. Deteve-se, sim, em pensamento, por um instante. "Puxa, que pena." Mas seguiu com o ritmo cadenciado. O importante era constância.


Depois da curva, o aclive era ainda mais acentuado no sentido centro-bairro. Ia subir até o topo da colina, lá onde fica o Nilo, e depois desceria. Já não havia tantos automóveis, mas ainda havia. As pessoas continuavam voltando ou indo, de um lugar a outro, umas mais calmas, outras apressadas. Enquanto contorna o paredão à sua esuqerda que servia de base para a escola lá em cima, cheirava natureza. Natureza úmida, para ser específico. As árvores úmidas, mas mais ainda as folhas caídas e amontoadas na calçada, produziam esse odor agradável que sobrepujava-se aos gases nocivos das descargas. O aclive aumentava e era difícil de manter o ritmo. Suor já lhe descia pelas têmporas avermelhadas e pelas canelas lustrosas. Naquele momento, lembrou da rosa. Daquela rosa que ele esmagara contra o chão úmido.


Teve impulso de voltar e tentar, de algum modo, reparar o dano que causara à inocente flor. Talvez juntá-la e trazê-la em casa, coloca-lá em um vaso com água abundante e cuidá-la com carinho. "Não. Ela quis fugir, saltar fora do buquê, quis tentar outra vida. Agora tem que arcar com as consequências. It's a wild world." Mais uma vez esqueceu dela. Tinha chegado ao topo.


Na descida, o cuidado com a cadência era ainda redobrado. Chegava a contar a respiração. Normalmente, 2x1: inspira, inspira; sooolta. Não lembrava mais da rebelde flor vermelha, porém não a havia esquecido. Ela continuava por ali, como um sussurro inaudível de tudo que poderia ter sido, um sussurro que ele teimava não ouvir. Assim ele seguiu, ritmo certo, à frente. O importante era a constância.