"Até mesmo o silêncio é um texto."

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Parte segunda.

Então foi que, naquela primeira noite, chegamos ao terraço. Durante o trajeto até o sétimo andar, fui alvo de furtivas tentativas de beijos que, ao não alcançarem a boca, tortutavam-me, descendo pelo pescoço. Passamos pelo corredor estreito do qual, ao lado esquerdo, se podia ver a paisagem escura ao norte através de longas janelas de vidro. À direita, as portas dos apartamentos. Do corredor quente, saímos para o terraço. Um vento severo nos recebeu. Havia no céu a lua, que por hora sumia por detrás de esparsas nuvens. Lá embaixo, a cidade continuava silenciosa. Se podia ouvir os carros que porventura aceleravam na Parnell Street, nada além disso. Sentamos em uma espécie de quiosque que havia por ali. Eu no canto de cá do banco, ela, no de lá. Encostei meu ombro esquerdo em um pilar que sustentava o pequeno telhado do quiosque, estiquei e cruzei as pernas e meti as mãos nos bolsos. Fiquei a fitar meus próprios pés, vestidos com tênis. Ora eu desviava pra ver o céu escuro, mas acabava por voltar a olhar os tênis. O vento frio e insistente continuava por ali.
- Tá frio aqui, gente...
- É. Isso é bom. Pra baixar o álcool.
- Eu não to bêbada, se é o que você acha.
- Ok. É bom tomar um ar fresco de qualquer jeito...
Um pequeno silêncio aconteceu. Então desdenhei a noite bonita que nos rodeava.
- Sempre que vejo a lua, penso em deus. - ela disse.
Fiquei um pouco surpreso de ouvir aquela palavra sair da boca dela de uma maneira tão afetiva, tão doce.
- É... por que os dois são distantes? - ironizei.
- Não. É tão bonito que só pode ser obra de deus. Mas pelo visto você não acredita...
A minha voz escorregava calmamente pela minha língua e dentes e lábios. Eu já tinha pensado muito no assunto, e já não tinha mais energia pra gastar naquilo.
- Eu não acredito que ele exista. Mas também não duvido que possa existir. O fato é que ele nunca se apresentou pra mim. Se ele baixasse aqui hoje e dissesse "Opa, Gian, tudo? Prazer, deus." aí eu ia perguntar pra ele o que ele acha de tudo e então... bom, aí não sei. Hehe. Só que eu respeito quem acredita de verdade, porque isso é bom para qualquer um. Te dá uma certa segurança, um last resort. Sentir que deus tá lá por mim e, se ele é por mim, quem será contra mim? Isso ajuda, é bom. Eu até invejo essas pessoas. A vida seria muito mais fácil se eu tivesse essa muleta. Meu pai chama de muleta. Ele é o mais ateu e critica bastante quem é crente. Eu, pelo contrário, mas não vou dizer que nunca fui radical. Já fui sim. Mas aí me dei conta que eu tava tentando fazer a mesma coisa que aqueles crentes chatos tentam fazer contigo: te converter. Depois que dei em conta disso, parei inclusive de falar no assunto. Não saio por aí espalhando meu ateísmo aos quatro ventos, mas se tu me pergunta, falo sem problemas.
- Eu não entendo como uma pessoa pode viver assim. Não sei se eu conseguiria. As coisas não têm muito sentido se você não acredita em algo superior, que tá lá por você quando você precisa, de quem você pode tirar forças. Não entendo... como que você vive, se você não tem deus com você? O que você busca?
- O que eu busco? Me manter vivo e pensando. Acho que é bem isso. Eu sou uma pessoa simples, se tu for ver. Estar com quem a gente gosta, tomar uma cerveja aqui e ali, dar umas boas risadas. Por aí.
- E quando você morrer?
- Ponto final. Acabou.
- Eu não sei, eu não conseguiria viver assim...
- Muita gente não consegue.
Houve uma pausa. Ela sentiu o vento mais frio, à medida que seus sentidos começavam a voltar à sobriedade.
- E como você descobriu que não acreditava?
- Acho que eu nunca acreditei... não sei, é difícil essa pergunta. Na verdade, nunca pensei nisso. Acho que não teve um ponto marcante que eu pensei "pronto, agora não acredito mais". Eu lembro de fazer orações que minha mãe me ensinou quando criança. Mas não me lembro se eu acreditava mesmo, ou se só repetia mecanicamente por que ela mandou... não sei. Ela ficou meio boquiaberta quando, lá pelos quinze ou dezesseis eu contei pra ela que eu não acreditava e era isso.
Ela fitava-me com olhos pedintes, enquanto eu mirava a lua.
- Tô com frio...
- Sinal que tá voltando a si.
- Eu nem tava bêbada.
- Sei.
- É verdade. Você ainda não me viu bêbada.
- Quer dizer que você é pior quando bêbada?
Ela só sorriu. E repetiu:
- Ai, que frio...
E apertou os braços contra o corpo num auto-abraço e fitou-me mais uma vez. Mas eu não ia abraçá-la.
- Vamos entrar então.
Levantamos e caminhamos até a porta, a qual eu puxei e segurei para ela passar primeiro, assim como eu já tinha feito com outras portas.
- Eu custo acreditar nessa sua educação de segurar a porta. Nenhum menino faz isso hoje em dia.
- Talvez nenhum dos que tu conhece. - eu disse. Ela sorriu.
- Não quero descer ainda.
- Tá, podemos ficar aqui pelo corredor.
Ela sentou no carpete, encostando-se na parede interna, enquanto eu sentei no vão das janelas de vidro. Sentei de lado, recostado na coluna de concreto que divide duas janelas, de forma que eu conseguia fitar o céu escuro à minha esquerda e ela à minha direita, quando conviesse.
- Ai, que vergonha... Você deve pensar que eu sou uma vagabunda, traindo meu namorado. É que você não entende.
- Não penso isso.
Claro que eu pensava.
- Que coisa louca, eu nunca ia pensar que isso aconteceria.
- Isso o quê?
- Que ia chegar alguém e ia acontecer tudo isso. Lembra a primeira vez que nos vimos? Eu cumprimentei você com o mais simpático dos sorrisos e você me olhou com uma cara, olhando de cima, tipo "que que essa paulistinha tá pensando que é?"
- Não, não pode ser.
- Foi. Me olhou com uma cara esnobe. Naquela mesma noite eu reclamei pro Vítor "esse gaúcho metido a separatista chega aqui e fica se achando mais que a gente..."
Eu tive que rir.
- Não é verdade, eu não pensei nada disso. Eu não pensei nada, na verdade, nem bem, nem mal.
- Fala sério. Você deve ter pensado, depois, "paulistinha barraqueira, fica gritando pela casa e tal".
- Não, não mesmo. Eu não julgo as pessoas antes de conhecer bem.
- Ah, fala sério que você não pensou mal de mim desde o primeiro dia?
- Eu já julguei muito as pessoas, sabe. Tipo, de cara, só de olhar pra pessoa. Mas isso não é justo, nem comigo, nem com o outro. Parei com isso. Me liguei que não dava boa coisa fazer isso. Só que também é impossível não fazer nenhum pré-julgamento, porque a gente faz isso no inconsciente, né...
- É.
Meu telefone começou a tocar. Como o microfone do aparelho estava estragado, eu precisava conectar os fones de ouvido antes de atender. Tudo estava embolado dentro do meu bolso, e por causa da demora para ajeita-los, não consegui atender a tempo. Era a gaúcha, nossa housemate. Merda, pensei, agora ferrou, com certeza ela vai desconfiar. Entretanto, minha preocupação não durou mais que o tempo de colocar o aparelho no chão, de forma a ser mais fácil de atender quando ela ligasse novamente.
- Era a Luisa...
- Ela deve tá preocupada comigo.
- Sim - e eu ri antes de continuar - quando estavamos lá no ap bebendo ela chegou pra mim e disse "Gian, controla a bebida dela que eu não vou cuidar de bêbado depois".
- Ah, fala sério?
- Eu disse "tá tranquilo, to controlando".
- E não tava controlando nada...
- Claro que não, não sou pai de ninguém aqui.

Uma nuvem tratou de encobrir a lua.
- Por que você sentou aí, tem medo de mim?
- Tenho.
- Eu não vou te morder...
- Será mesmo?
Risos. Eu via as nuvens movimentando-se, vultos na escuridão, e podia perceber a lua lá atrás.
- Senta aqui do meu lado, não vou incomodar você.
- Tá. Mas te comporta.
Fui e sentei ao seu lado, encostado na parede. Agora, podia ver as nuvens sem precisar virar o pescoço.
- Eu gosto de você.
A afirmação me surpreendeu. A voz doce e firme que a pronunciou, também.
Gostava eu dela? Não. Pensando bem, não tinha certeza.
- Eu também gosto de ti.
Ela sentira minha hesitação.
- Eu não to dizendo que amo...
Eu sorri, e, sorrindo, repliquei.
- Sim, e eu não entendi assim. Entendi o que tu disse. E eu também gosto de ti.
- Não acredito.
- Bom, não há nada que eu possa fazer.
- Eu gosto de você.
Odiei o replay. Repetições sempre acabam por soar mal.
"Tu já falou isso", pensei irritado. Contudo disse calmamente:
- É, tu já disse isso. Mas por quê?
- Por quê?
- Por que você gosta de mim?
- Ah... não sei, você é diferente...
- Pode apostar que sim...
- Tem esse jeito misterioso.
- Misterioso, eu? Não concordo...
- É verdade... você tem esse jeito e não fala muito.
- Bom, isso não quer dizer necessariamente que eu seja misterioso...
- Você foge quando a gente tenta conversar com você, tipo, sempre se esquiva. Parece que esconde algo e tem medo que a gente descubra muito de você. Parece que tem algo muito forte aí dentro que você não quer soltar...
Tive que parar um pouco pra pensar. Fazia sentido. "Bluebird".
- Por que você é assim, por que você não se solta? - ela perguntou.
- Boa pergunta, porque eu também queria descobrir. Até hoje ninguém conseguiu desvendar. Se você souber, por favor, me conta.
E então mirei os olhos dela e sorri.
- O seu olhar... é estranho.
Agora essa.
- Como assim?
- Não sei explicar, o seu olhar me desestrura...
O poder que ela me conferia revelando aquilo fez com que eu instintivamente voltasse a olhar bem fundo nos olhos dela, desejando aquele poder de provocar o caos, a inquietação no seu interior. Desfiz, imediatamente, sentindo o quão ridículo tinha sido.
- Talvez porque você nunca olha nos olhos da gente... - continuou ela.
- Deve ser, eu não costumo fazer isso mesmo. Às vezes eu me sinto desconfortável olhando diretamente nos olhos, não por minha causa, mas por causa do outro, porque pode se sentir encarado... entende o que eu digo?
- Sim...
- É, é isso.
A lua lá fora estava descoberta.
- Posso te beijar?
- Na bochecha...
- Não, eu quero na boca.
- Então pede pro teu namorado, eu disse sorrindo.
- Ai, pára...
- Por quê? Nada mais natural que tu pedir um beijo pro teu namorado, não?
- Ele não se importa comigo...
Ai, deus, não... não começa...
- Então larga dele.
- Não, é complicado...
- Porque tu quer. Eu sei lá, pra mim nunca foi complicado. Se tu gosta, fica junto, se não, separa. Prático, não acha?
- É, mas tem isso que eu prometi pra ele que ia ficar junto até a gente voltar pro Brasil.
- Sério? Tipo um contrato? Isso é a coisa mais moderna que eu já vi, pra não dizer outra coisa, hehe.
- Não é... é que a gente decidiu vir junto. E a nossa história também é um pouco fora do convencional.
- É? Como assim?
- Quando eu conheci o Vítor, ele tava namorando...
- E tu era a outra?
- Foi...
- E aí?
- Ele largou ela pra ficar comigo.
E então ela falou que não era aceita pelos pais dele e de algumas indiretas cruéis que ela recebia deles. Falou do quão sem voz na família era o namorado, que "abaixava as orelhas" para tudo o que diziam. Falou da própria família, das intrigas e dos problemas de se ter meio-irmãos que são preferidos. Falou da infância, que se vestia como menino; da adolescência, ainda vestindo-se como menino.
Depois de ouvir tudo aquilo, fiquei desarmado e passei a sentir alguma espécie de carinho, alguma solidariedade por aquele outro ser que tinha problemas maiores que os que eu nunca tive.
- Você é uma pessoa muito legal por me ouvir aqui, reclamando da vida.
- Tu já deve ter visto que eu prefiro muito mais ouvir que falar.
- É verdade. Mas agora você vai falar. Eu fiz um relatório da minha vida, agora é sua vez.
- Não tem nada de especial, minha vida é normal demais...
- Vê só, já tá se esquivando...
- Tá bom, mas não tenho culpa se tu dormir enquanto eu falo...
E então eu fiz um relato breve dos highlights da minha timeline. Alguns estavam no facebook, outros nunca estarão. Confesso que deixei escapar várias coisas que eu jamais diria a alguém que conhecia há tão pouco tempo, porém eu estava de certa forma à vontade e tudo saiu leve e displiscente.
- As coisas que você me contou não são de uma vida normal, mas ainda assim acho que você não me contou tudo...
Concordei sorrindo.
- Tem coisa que eu procuro nem contar pra mim mesmo...
- To adorando ficar aqui contigo. Você é um menino diferente...
- É, eu sei. Agora se isso é bom ou ruim, é outra história.
- Isso é bom. Gente, não sei o que tá acontecendo aqui... me beija!
- Não. Eu sei bem o que tá acontecendo. O Vítor tá em Londres com os pais e tu acha que ele tá te traindo com alguém, ou com vários alguéns, porque ele já fez isso antes, tu bem sabe. Aí tu tá me usando pra fazer vingança de uma coisa que tu nem sabe se aconteceu...
- Eu não tô te usando.
- Não tem problema... todo mundo usa todo mundo. As relações entre as pessoas são assim. Cada um usa o outro praquilo que interessa. Tu tá querendo me usar pra fazer vingança no namo, e eu to te usando como amiga, pra ter uma conversa assim.
Eu tinha o braço direito recostado no joelho da perna direita que estava dobrada, enquanto a esquerda deitava-se por completo em direção à parede oposta. Agora eu deixava os olhos seguirem o movimento do meu polegar que acariciava as unhas dos outros dedos num movimento distraído.
- Se eu tivesse procurando só isso eu podia ter feito com qualquer um...
- Ah sim, mas eu era o único homem ali. Loirinho e de olho azul, ainda por cima.
Sorri. E ela também teve de sorrir.
- Não é, eu gosto mesmo de você, gosto do jeito que você conversa, falando devagar, sem pressa e com calma.
- É mesmo? Tem gente que acha que eu sou esnobe por falar assim.
- Pode parecer pra quem não te conhece de verdade.
- Tu me conhece de verdade?
- Não tudo... mas eu sinto que você é uma pessoa boa.
- Eu tento ser, mas nem sempre a gente consegue, né...
- Não, mas você é.
Então meu celular tocou mais uma vez. Era Luiza novamente. Com um jeito de mãe, perguntou o que acontecia ali e eu disse que a paulista dormia e daqui a pouco eu a acordaria e desceríamos ao apartamento. Duvido que ela tenha comprado. Já fazia umas duas horas que estávamos lá.
- Certo que ela desconfia de algo.
- Não, ela é meio bobinha... - disse a Paulista.
Eu tive que concordar com uma risada.
- Eu nunca tive uma conversa assim com ninguém...
- Como assim?
- Conversar de coração aberto, assim como estamos fazendo.
- Sério? Tu não tem nenhuma amiga com quem você pode falar tudo, assim, sem medo de ser julgada e coisa e tal?
- Não.
- Tá, aqui em Dublin, não. Mas no Brasil?
- Não.
- Mesmo? Ninguém pra ouvir e ninguém pra te ouvir?
- Não.
Então eu fiquei surpreso. Quando você descasca uma pessoa, está sujeito a isso. Ela era uma guria das mais extrovertidas, como eu já disse, mas, aparentemente, agora eu descobria, só para trivialidades. Ela não tinha com quem se abrir, com quem desabafar as inquietudes mais profundas de seu ser. Aquilo sim devia ser terrível.
- Você tem alguém assim?
- Claro! Meus amigos, meus bruxos. Aqueles que te falei antes. Logo se vê que eu não tenho muitos amigos, mas os que tenho são mais do que eu poderia pedir. E isso é uma coisa que eu acho muito engraçada aqui em Dublin. O pessoal vem de tudo quanto é lado, aí conhece o pessoal da casa e de repente, menos de uma semana, já são os melhores amigos da vida. Não sei, eu não consigo achar isso normal... não pra mim, né, que sou diferente...
- Concordo com você...
Senti a melancolia que saiu naquelas palavras. E ainda mais nas que se seguiram.
- Eu quero muito te beijar.
E então eu amoleci e aproximei minha face da dela e a beijei delicadamente nos lábios carnudos.
 

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Parte primeira.

Agora, aqui, tudo é silêncio. O único, ou os únicos sons que talvez se possam ouvir são os das teclas que eu bato com esses dedos ligeiros, misturados com os eventuais carros que passam na rua em frente. Agora são três e doze da manhã em Dublin. A maioria das baladas já acabou antes das duas e esses carros que passam só podem ser retardatários de uma noite que ainda não acabou. Lá fora faz frio, um frio de verão tão comum e europeu. Mas aqui, aqui dentro, não é frio. Bebo o que sobra das Tuborgs que compramos para essa noite que reservou não mais que muitas emoções.

Tá, falar em emoções é meio exagerado, até porque eu me situo um pouco além disso. O que quero dizer é que, para mim, não houveram emoções, senão um pouco de surpresa diante do que o mundo pode aprontar. Mundo velho, mundo safado. Se eu o chamasse de deus, muitos ficariam ofendidos. E é por isso que eu o chamo mundo.

Acabei de colocá-la a dormir nua em sua própria cama, acabada. Não pelo sexo, mas pela bebida. É, eu sei, mas não consigo me aproveitar nessas situações. Algum maldito (ou divino?) código de ética intrincado no meu cérebro me faz ver os maiores seios da minha vida e deixá-los em paz, dormindo seu sono alcoólico.

É prudente que eu conte como tudo começou. Afinal, tudo que se espera de uma história é que tenha início, meio e fim. Terão de me desculpar que o fim ainda desconheço, mas garanto que do início ao meio eu os proverei. A não ser que o resto da Tuborg acabe antes que eu possa chegar até lá. Entretanto, comecemos. pelo começo, que é mais prudente.

Então eu cheguei a Dublin e tomei meu lugar na casa que abriga sete pessoas. Até dia vinte e sete, efetivamente, é aqui que moro. Havia um paranaense e um casal de paulistas que estava aqui há meses, uma gaúcha que chegara comigo e uma outra paranaense que chegara dias antes.

Como de praxe, falei pouco. Quem queria conhecer-me um pouco mais tinha de transpassar a barreira da minha falta de interesse por outros seres humanos, ou não-humanos. Alguns, com certeza, tomaram da opinião geral de que eu era esnobe e considerava-me mais que todos. Não era, não é, e nunca será isso. É apenas desinteresse. Todavia, o paranaense tomou coragem e atravessou a barreira. E eu, que já o havia rotulado como o cara simpático que agrada a todos, acabei cedendo. Não foi, contudo, uma cessão deliberada. É sabido da minha antipatia com esses conquistadores sociais que tem o poder de cativar toda e qualquer criatura que passa seu olhar. Antipatia essa que pode, sem exagero algum, ser chamada de inveja. Porém, esse paranaense não conquistava as pessoas com aquele pensamento egoísta, tão humano, de lucro próprio, como faz a maioria. Pois foi que acabei tornando-me seu quase amigo, de verdade.

Foi ele quem fomentou então o interesse dos outros por essa minha face. Claro, porque se ele, tão querido por todos, se interessa por mim, todos hão de querer se interessar. Talvez não por interesse genuíno em mim, mas por ele, saca?

Assim foi por duas semanas.

Aí aconteceu algo que não vou dar-me o trabalho de explicar todos os detalhes e complicações, porque isso me enxe o saco. O homem do casal paulista foi morar num flat com os pais, que estavam visitando a Europa por umas semanas. A mulher ficou sozinha e, como toda mulher, sentindo-se carente. Vocês já intuem o que acontece agora, não é mesmo? Mas calma lá. Vamos por partes.

O certo agora, como bom contador de histórias, é falar sobre essa personagem que vai tomar conta da história a partir de agora. Porém me falta vontade e perspicácia para descrevê-la nos mínimos detalhes. Diremos, assim, que ela é uma paulista extrovertida, e isso já diz bastante.

Depois, vim a saber que o casal era conhecido como casal Nardoni, e fez todo o sentido. Brigavam com certa frequência, mesmo estando ali, naquele apartamento, divindo o espaço com outras pessoas. Eu não me importava, mas tinha de disfarçar a todo momento aquele meu sorriso de canto, debochado, cruel.

Acontece que chegou o dia de o paranaense, como já dito bem quisto por todos, deixar o apartamento. Viajaria por alguns países e depois retornaria a sua casa em Curitiba. Mesmo o conhecendo há pouco tempo, senti certa comoção, que para as meninas foi ainda maior. Não que chorassem copiosas lágrimas, mas sentiram. Era com compaixão, e também certa inveja, que eu ouvia, durante o desenrolar do dia, os suspiros de "que saudade do paranaense..."

Naquela noite, decidiu-se que compraríamos cervejas e vodka para celebrar. Não a recente saída, é evidente, mas sim a recém adquirida folga do trabalho no outro dia da paulista. Compramos uma garrafa, que esvaziou mais depressa que latinha de Coca na mão de piá. Buscamos outra, e essa foi absorvida com mais calma.

Não lembro exatamente como começou ou o que fez acontecer, mas foi que, em dado momento, ela, a paulista, começou a aproximar-se. Eu estava sentado/deitado no sofá e ela ao meu lado, porém, sentada virada na minha direção. Percebia que ela estava alterada e que começava, de leve, a pronunciar-se para mim. As outras duas meninas permaneciam ocupadas com uma coisa ou outra na cozinha e, o mais interessante é que não há paredes dividindo os quarenta metros quadrados que ocupam a cozinha, a sala de estar e de jantar. Caipirinhas rolavam na noite fresca de Dublin, mas o clima ali era quente.

Eu desconversava diante das investidas, mas no fundo, meu animal interior estava pronto a pular em cima da presa que oferecia o pescoço cheiroso. Contudo, eu era prudente. Era importante que ninguém soubesse, o segredo era alma daquele tipo de negócio. Depois eu talvez diria "perdoe-me padre, pois pequei". Tá, eu não diria. A mão dela começou a tocar, despretensiosamente, minhas pernas, naquele sem-querer querendo. Mais ou menos por aí a gaúcha recolheu-se, foi dormir. Tinha aula no outro dia, como se isso fosse desculpa pra não continuar ali, bebendo e vivendo. E aconteceu que a curitibana foi ao banheiro, deixando a brecha que nós dois, ali no sofá, esperávamos. Entretanto, alguma amarra, que você pode chamar escrúpulo ou cú-doce (também não sei o que foi), me fez esquivar daquela carnuda boca adocicada com álcool e limão.

Era uma bela morena de pele clara. Os olhos negros tinham certa profundidade e permaneciam sensualmente semi-fechados ao me fitar. O nariz era quase perfeito, não fosse a pequena curvatura adunca, imperceptível aos olhos menos exigentes. A boca, como já disse, carnuda e muito bem lapidada abria-se num grandioso sorriso de dentes bem postos que adonava-se das bochechas fofas. Como cerejas no bolo, pequenas sardas, invisíveis a mais de um palmo de distância. Os cabelos negros desciam longos pouco abaixo do pescoço quando soltos. E se caíssem pelo rosto, como aconteceu algumas vezes, enloqueciam até o mais velho dos pênis. O corpo era legítimamente italian-made: seios grandes, braços roliços, cintura proporcional e uma bela bunda, reforçada por coxas bem recheadas. É, meu caro, de enlouquecer.

Tendo eu esquivado o beijo, ela acertou minha bochecha. Não desistiu, porém, e desceu, provocando arrepios no meu pescoço com os lábios. Jesus. Então ouvi a porta do corredor se abrir, e a afastei. Ela, aos risos, pedia mais bebida. Eu já tinha parado.

Coisas parecidas aconteceram aqui e ali, até que ela parecia descontrolada e eu aconselhei a curitibana a levá-la ao terraço, onde um vento frio e insistente sempre sopra, para que ela recuperasse a consciência. Não lembro exatamente o que aconteceu, mas quem acabou levando-a, fui eu.

Era uma bêbada teimosa, queria ir pelas escadas. Segui-a, cuidando para que não caísse, fazendo o papel do amigo responsável que não está com vontade de pegar a mulher do próximo. No jogo de escadas que fica entre o quarto e o quinto andar, ela parou. Recostou-se junto a janela fechada, que permitia ver os fundos do edifício, o pátio decrépito de uma empresa de transportes. Além disso, algumas luzes acesas em alguns dos apartamentos da vizinhança. Uma paisagem horrível, muito diferente dos parques e dos flats georgianos. Ali também encostei-me.

- Ai, gaúcho...

- O quê?

- Fica comigo...

- Não vai dar.

- Por quê? e esse porque tinha um "erre" carregado do interior paulista, algo como "abre a porteira, Chico Bento". E tinha todo seu charme naquela boca carnuda.

- Você não tem namorado?

- Tenho, mas eu quero ficar com você... você não quer?

- Eu quero.

- Então?

- Mas não posso.

- Por quê? aquele mesmo porque enlouquecedor.

- …

Deu um passo em minha direção e me abraçou.

- Posso te beijar?

- Na bochecha, sim.

- Não... quero te beijar na boca.

Não tive tempo de responder, pois a boca dela já passeava pelo meu pescoço, enquanto suas mãos apertavam meu corpo contra o dela e seu ventre se pronunciava contra o meu. Acariciei seu rosto com o meu. Se era para provocar, então provoquemos. Procurei sua boca, titubeei e afastei, deixando-lhe a bochecha. Ela beijou, umedecendo minha pele com saliva morna. Brinquei assim mais um pouco, observando como seu corpo deixava-se guiar pelos sentidos. Deixava os olhos fechados e parecia embalar-se por uma dança de aromas e calor, ansiosa pelo toque dos lábios.

Rendi-me. Toquei sua boca com a minha, de leve no primeiro momento, como o jogador de poker que examina os adversários nas primeiras rodadas, para aplicar todo poder de sua estratégia no decorrer do jogo. E então as mãos foram jogadas, e os lábios se comprimiram com força, confundindo-se numa mistura rosada ou avermelhada, uma luta de carne contra carne, uma guerra de pele que só possui vencedores.

Minhas mãos, que nessas situações sempre adquirem certa vida própria, começaram a explorar o terrítório repleto de belezas naturais de seu corpo. Começaram pelos cabelos macios e cheirosos como jardins vitorianos no auge da primavera. Desceram os caminhos de suas costas para quedar-se nos montes presunçosos onde terminava o vale da espinha dorsal. Entraram pela calça jeans apertada e descobriram uma calcinha minúscula, mas, sobretudo, regozijaram-se na superfície macia daqueles montes. Apertavam com força o máximo que conseguiam agarrar naquela abundância de sensualidade. Depois de satisfeitas, decidiram seguir a trilha deixada por aquele finíssimo fio de calcinha que circulava a cintura e levava à caverna do tesouro. Cada mão seguiu um caminho, uma desceu pelo leste, enquanto a outra tomou o oeste. Chegaram à planície, vestida graciosamente pela vegetação rasteira que aguçava o tato dos dedos. Brincaram mais um pouco, indo e voltando pelo mesmo caminho. Até que a mão direita resolveu ser hora, e avançou pela planície. Chegando à entrada da caverna, o terreno estava úmido e isso era por demais agradável. A essa altura, as bocas já se tinham desgrudado, mas ela beijava meu pescoço e agarrava-se ao meu corpo com ainda mais força. Suspirava e tudo isso.

Muito bem, já era hora de parar. Assumi de volta o controle das mãos, removi-as das zonas erógenas e afastei seu corpo do meu, protestando que ela deixaria hematomas incriminatórios na minha pele de branca de neve. Ela afastou-se. Estava alterada. Relembrei-a do motivo de estarmos ali. Fomos até o elevador e subimos até o terraço.

Já começo a ver a luz entrando pela janela a minha frente. Não faz sol, será mais um dia cinzento que talvez não valha aproveitar. Acabou a cerveja e o sono me tenta. Talvez seja até melhor terminar por aqui e deixar espaço para uma sequência. Melhor ou não, é assim que vai ser.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Sobre ver cara e ver coração.

Ainda deitado, largou o Hemingway sobre a cômoda. Estava já na metade. Devorava aquelas frases com velocidade, o que o fazia temer perder algum ponto interessante e oculto, justamente pela pressa. Era, entretanto, natural. Alguns livros foram feitos somente para serem relidos, servindo a primeira leitura como aperitivo que antecede a refeição.
Foi então que o viu.
Estava parado de pé, a fitá-lo com um sorriso verdadeiro, mas que possuía, notadamente, indícios de malícia.
- Não, presidente, hoje não quero papo contigo. Hoje não. Ontem nos excedemos e tu sabe o que acontece.
- Agora quer me evitar?
- Não é isso, tu bem sabe que sempre acabo te procurando...
- E eu acabo sempre te aceitando, imagina se eu fosse orgulhoso...
- Ah, não te finge de coitado. Tu também não é santo, tu apronta pra mim.
- Mesmo assim sou tua melhor companhia.
- Mesmo assim tu é.
- Até porque não tem mais ninguém por aqui.
- Obrigado por lembrar...
- Não te faz de coitado. Ficou enfurnado nesse quarto durante toda a semana, nem com teu irmão falou direito. Nem olhar nos olhos dele, olhou.
- Ah, ele entende. Ele sabe que preciso desse momentos introspectivos.
- Larga mão de ser retardado, fingindo essa melancolia que só serve à tua auto-piedade.
- Bah, hoje tu tá malvado!
- Bonzinho é que nunca fui. Agora, como tu é tão certo que teu irmão entende? Quando que tu falou sobre isso com ele?
- Nunca, isso não é assunto que se fale. Isso a gente sabe, a alma sente. Ainda mais que somos almas irmãs. Eu o compreendo e ele a mim e não precisamos de palavras dissimuladas pra enfeitar isso e tornar uma novela das oito.
- Isso não é verdade. Tu pensa assim pra te enganar, porque tu sabe é que tu não consegue ter essas conversas. Tem alguma coisa aí dentro, um tipo de fechadura que nem mesmo eu consigo abrir. E, em vez de tentar abrir essa porta, ou porteira, que libertaria teu coração dessa carapaça dura e espinhenta que afugenta quem te cerca; tu te conforma com esse pensamento de que ele entende, de que todos entendem e que é teu jeito de ser.
- Fica quieto! Tu tá aqui pra me fazer sentir melhor!
- Quem te disse isso?
- Tá, chega de me dar nos dedos... to ficando cada vez pior.
- E é disso que tu precisa. E é por isso que tu precisa de mim. Nada dessas desculpas de afastar o frio. Tu me precisa justamente pra te afundar, te jogar no chão com uma patada carinhosa, mas nem por isso menos dolorosa que qualquer outra. Aí tu te encolhe, como um feto abandonado pela mãe na sarjeta, com a única diferença que não chora. Essa armadura do teu coração te impede de rolar lágrimas, coisa que é tão natural e bonita, quanto necessária. Leva horas nesse estado deprimente, nesse sofrimento quase físico, pra depois levantar, limpar o casaco e seguir caminho, com essa cara ridiculamente dissimulada, como se nada tivesse acontecido e estivesse tudo bem.
- Mas é assim que é pra ser! Todo mundo esconde o seu sofrimento, isso é que é natural!
- Não desconversa. Eu to falando da tua incapacidade de libertar de verdade esses demônios. O teu sôfrego estertor de feto abandonado não se esgota, porque não termina em choro. Só lágrimas poderiam te trazer alívio verdadeiro. Só depois de um banho de lágrimas essas tuas bochechas sínicas serão capazes de sorrir com sinceridade e leveza. “É preciso paz pra poder sorrir”, diz a música, e essa paz - que não necessariamente se contrapõe à guerra - essa paz de espírito tu não a tens. Assim o é que é recorrente esse teu sofrimento exterior, que nem dá pra chamar de verdadeiro, porque é forçado. Tu força-te a isso na tentativa de dar fim ao teu desespero. E tu sabes que não acontece, não termina. Então tu te levantas com a cara deslavada, fingindo pra ti mesmo que está tudo bem, quando tua alma ainda permanece escura.
- Agora deu pra conjugar a segunda pessoa e usar os oblíquos adequados? Olha que vão te chamar de arrogante, ein. Ninguém gosta de alguém falando desse teu jeito esnobe...
- Essa tua ironia só vale porque eu sei do que tu tá falando. Mas tem gente que não vai achar graça. No máximo vai repetir esse teu sorriso sarcástico, com esses olhos afiados que são também dissimulados, na medida em que não são capazes de mostrar o sofrimento verdadeiro que os preenchem quando fechados.
- Tá, vai, continua batendo. To começando a concordar contigo que eu gosto mesmo de apanhar.
- Retardado, não é nada disso! O que digo é que tu esconde o teu verdadeiro ser por detrás dessa melancolia, auto-piedade, burrice, chama como quiser. Entende agora? É exatamente o contrário! Agora não adianta me perguntar porquê, que não sou doutor metido em mentes, principalmente como essa tua aí.
- Sim, tem coisas erradas na minha cabeça, acho que nunca vou conseguir consertar.
- Cala essa boca!! Parece que tu não ouve o que falo! Deixa de ser coitadinho uma vez na vida! “Ai, sou vítima do destino”, “ai, o mundo me fez assim”, “ai, a sociedade está afogada em estrume”, “ai, não adianta nem tentar”. O teu problema é assumir de uma vez o que tu sentes de verdade, sem essa cortina de ferro ridícula. Por trás desses olhos verdes que às vezes tu cobre com esses fiapos amarelados de cabelo - se achando o máximo - existe nada mais, nada menos que alguém com medo de viver... um covarde!
Os olhos verdes se arregalaram imediatamente.
- É isso, e tu sabes, covarde!
O cabelo eriçou-se de leve e as bochechas avermelharam.
- Covarde, covarde e covarde. Nada além de um covarde!
Irado, arremessou a garrafa contra o chão. O vidro escuro espatifou-se contra a lajota cor de neve. Estilhaços preencheram aquele piso até então límpido. O pouco conhaque que ainda havia ali dentro espalhou-se cuidadosamente, tingindo de cobre o mesmo chão ferido pelo vidro. Parecia sangue escorrendo, mas só parecia. O cheiro que impregnou o quarto era bem diferente. As palavras cessaram e, para espanto de alguém que não estava mais ali, gotas de outro líquido também pingaram naquele mesmo chão.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Bluebird - Charles Bukowski.

there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too tough for him,
I say, stay in there, I'm not going
to let anybody see
you.

there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I pour whiskey on him and inhale
cigarette smoke
and the whores and the bartenders
and the grocery clerks
never know that
he's
in there.
there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too tough for him,
I say,
stay down, do you want to mess
me up?
you want to screw up the
works?
you want to blow my book sales in
Europe?

there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too clever, I only let him out
at night sometimes
when everybody's asleep.
I say, I know that you're there,
so don't be
sad.
then I put him back,
but he's singing a little
in there, I haven't quite let him
die
and we sleep together like
that
with our
secret pact
and it's nice enough to
make a man
weep, but I don't
weep, do
you?

segunda-feira, 4 de julho de 2011

"There's nothing up their sleeve".

Inverno, mas sexta-feira. Sensação de zero graus celsius na rua, mas sexta-feira. Desceram do Gol equilibrando-se no meio de tantos casacos. As mãos geladas, mesmo assim. Se olhassem contra a luz, veriam milhares de ridículos pingos que não caíam, mas podia-se dizer que flutuavam pelo ar. Não era chuva, mas também não era neve. Garoa, digamos. Aquela garoa fina completava o cenário de uma horrível noite de inverno gaúcha. Na frente do bar, as mesas e as cadeiras estavam postas, à espera de clientes.
- Eaí seu Breno!
- Opa, gurizada! E esse veranico, ein? Acho que amanhã pego a Free-Way e me vou pra Mariluz tomar banho de mar.
- Hahah, mas leva casaquinho que de noite esfria...
- Hah, pode deixar. Pilsen?
- Pilsen. Dois.
Sentaram lá dentro, não na calçada. Loucura tinha limite, afinal de contas. O bar, vazio de gente. As garrafas gelando nas prateleiras. Algumas nos freezer, para atingir a temperatura ambiente. Do radinho de trás do balcão saía a voz do Pedro Ernesto, narrando Argentina e Bolívia. Da rua, não chegava barulho algum.
Os copos chegaram, repletos com moléculas disso, combinadas com moléculas daquilo, e o levedo e o mosto e a fermentação e o lúpulo e toda a ciência que havia por trás do líquido que entrava para depois sair tão inútil quanto entrou. O senhor proprietário-garçom-caixa voltou a sentar atrás do balcão, ao lado do radinho. Brindaram. Beberam e gemeram. Depois do pequeno ritual, começaram a trocar palavras sobre os causos do trabalho, da família, dos amigos. As matérias aprofundavam-se na medida que os copos esvaziavam, eram levados à chopeira e trazidos de volta, repletos do mesmo líquido. Já tinham bebido alguns, quando desembocaram naquele papo.
- É que, tu vê, né... suicídio não é uma coisa boa...
- Como assim?
- Não pra quem morre, claro, mas pra quem fica.
- Família?
- Sim, também, mas to falando de algo maior.
- Meu pênis é que não é, então...
- Hahah, não, claro que não. To falando do sistema como um todo. Daria até pra dizer a sobrevivência da espécie, mas aí já é viagem demais.
- Explica.
- Seu Breno, mais dois aqui. Assim, é mais ou menos o mesmo motivo pelo qual sempre tem que existir pobres. Imagina se todo mundo fosse, vamos dizer educado e rico. Quem ia varrer as ruas ou recolher o lixo? Quem ia limpar o banheiro dos bares e tal?
- Aham.
- Agora pensa, será que esse povo todo é feliz? Será que o cara que trabalha oito horas num subemprego de merda, depois perde mais algumas horas indo e voltando pra casa, que ganha uma merreca que mal dá pra alimentar a mulher gorda e as cinco crias... será que esse cara é feliz? Ele chega em casa e assiste a novela onde vê mulher gostosa com carrão, mansão, festas, badalação. Tem como esse cara ser feliz?
- Tu tá falando de ti ou é impressão minha?
- Talvez esteja, mas eu ainda tenho este chopp e uma boa companhia pra essas conversas que a gente sabe não vai resolver nada, não vai levar o mundo a lugar algum, mas pelo menos faz a gente sentir que entende como a roda gira e isso nos basta, por enquanto.
- Sim. Vamos ter essas conversas mesmo depois de ter ganhado na loteria.
- Talvez. Pô, tá frio aqui, ein...
- A mãe não mandou trazer casaquinho?
- Mandou, tá no carro. Mas não vou lá pegar... tá muito frio pra sair ali na rua.
- Faz sentido.
- Bom, dizia eu que a aritmética... hehe, não, dizia eu que esse pessoal é infeliz, só pode ser, porque leva uma vida de cão enquanto vê os outros aí, indo e vindo com seu luxo e seu sorriso no rosto e...
- Mesmo que seja sorriso de fluoxetina.
- Aham, e tá tão na moda, né? Pensei em comprar alguns pra tomar no café da manhã. "You work at a smile and you go for a ride".
- Essa é velha.
- Velha, mas boa.
- Vera Fischer.
- Melhor ainda.
- A Flávia Alessandra é a nova Vera Fischer.
- Concordo. Deusa. Ah, eu beijava ela toda, até o...
- Já sei, já sei. Continua com a história dos suicídios.
- Pera, deixa me recompor.
- ...
- Onde eu tava mesmo?
- Subemprego, homens infelizes...
- Sim, tá, aí esses locos levam uma vida de merda, miserável. Se eu tivesse nessa situação - e um dia eu posso tá mesmo - o que me impediria de, sei lá, meter uma bala na cabeça, ou uma corda no pescoço?
- Deus.
- Exato. Agora, porque deus é tão conveniente no nosso esquema de vida? Pensa numa greve. Tudo para, é um caos. Bom, só ver essa dos Correios uns dias atrás. Todo mundo enlouquecido porque uma das engrenagens parou. Agora, pensa uma greve permanente. Os trabalhadores não vão trabalhar mais, porque pensaram que não tem sentido se matar dia e noite pra viver como um cachorro e morrer com o mínimo de decência. Aí decidem morrer de uma vez, abreviar a coisa toda. Hoje não tá todo mundo com uma pressa horrível de viver? Então, que se viva mais depressa e que se morra duma vez. Aí deu, né. Sem ninguém pra meter a mão no grosso... levantar as paredes, botar tijolo a tijolo pra erguer os edifícios... bom, eu não sei o que ia acontecer. Não sei se o pessoal tiraria o Gucci, ou o Armani pra pegar no pesado. Mas uma coisa eu sei, a humanidade ia sobreviver.
- Vaso ruim não quebra.
- Ah, quanta saberdoria carregam os ditos populares, não é? Daí que eu comecei a pensar nisso nessa semana, quando não sei porque cargas d'água minha mãe comentou que não se noticia gente que se suicidou. Tu vê que fulano tacou cinquenta e tantas facadas noutro, que o cara incendiou a mulher por causa de ciúme... mas suicídio não aparece. Eu nunca tinha reparado. E aí a mãe mesmo disse, "pra não incentivar". E eu pensei, claro! O ser humano é a coisa mais ridícula quando se trata disso. Viu um fazendo, ah, é normal, vamos fazer também.
- Se um pula duma ponte, o outro faz também.
- Hoje tu tá o senhor sabedoria popular, einhô...
- Heheh.
- E é isso. Se o pessoal começa a se dar conta, não, melhor, a ver que os outros fazem, vão começar a pensar: "pô, o cara fez... por que eu não"?
- Isso também dá pra aplicar na putaria das gurias de hoje. Começo com o cinema, claro, os americanos expertos... meteram uma Marilyn Monroe toda vadia e o brasileiro começou a comprar a ideia. Hoje, claro, a ideia amadureceu e o hip hop e aqueles clipes pornôs tão fazendo a frente. Mas é isso, a menina é santa até ver a tv. Aí já fica um pouco safadinha, mas ainda tem uma certa noção. Mas aí chega na festinha e vê as amiguinhas de mão em mão, ou melhor, de boca em boca...
- De pau em pau, já dá pra dizer.
- Sim! E a gente adora!
- Mas claro!
Brindaram. Sem entusiasmo. Um brinde clássico.
- Concordo com teu papo sobre o suicídio. E essa coisa do jornal eu já sabia, mas nunca juntei os pontos. Legal lembrar disso agora.
- Pois é. Aí veio a igreja, muito sábia e muito malandrinha, e disse que quem se suicida vai pro inferno. Resolveu todos os problemas, mesmo que agora as pessoas já não sejam mais tão crentes e tal. Isso porque ficou o estigma. O falatório que dá quando alguém se mata. Os cochichos na família, nos vizinhos, né... sempre rola uma "culpa dos pais", é claro.
- Sempre pensei nisso. Olha bem, a gente não é cem porcento livre, mesmo pra se matar. Não que eu não consiga puxar um gatilho ou algo assim, mas uma coisa lá dentro fica dizendo: "bah, e quem fica"? O que as pessoas que gostam de mim vão ficar sentindo? Tu, eu sei que vai ficar orgulhoso e até com inveja, mas e a minha mãe, meu pai?
- Hahah... é, o cara tem essas correntes prendendo no mundo.
A conversa cessou por um tempo. Os copos foram reabastecidos. Um par de animados casais entrou e sentou na mesa ao lado. Também pediram o mesmo chopp. Não tiveram assunto que chegasse perto da profundidade da vida ou dos sentimentos. Os quatro falavam muita bobagem, é verdade, e riam como bobos.
Os dois permaneceram ali, ouvindo os casais. Eventualmente, trocavam olhares e sorriam de canto. Então levantavam o copo e bebiam um gole ressentido, tentando preencher o vazio de seus próprios corpos. O pior de tudo era saber que a felicidade era fácil.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Constância.

O sol ainda iluminava o topo dos edifícios mais altos. O ar entrava frio pelas narinas, para sair quente, logo depois, pela boca já ressecada. Assim ele passava correndo ao lado das grades que protegiam a obra ao longo do arroio. Cheiro de barro no ar. Havia chovido durante o início da tarde e, por isso, alguma água alaranjada ainda estava acumulada perto do meio-fio. Os carros andavam devagar, em fila única, já que a obra ocupava metade da pista. E a fila era grande. Alguns voltavam aos seus recantos, alguns iam aos estudos, alguns à cerveja. Era um joguinho interessante adivinhar aonde iam todos aqueles carros que passavam contra ele. Podia visar o rosto de alguns, embora escurecesse depressa. "Aquela tia ali, no seu Picanto, vai pra academia malhar e ficar em forma. Não pro maridão, claro. Pra algum outro que já tenha, ou que ainda deseja encontrar." O magro rapaz que vem em cima da bicicleta, com a mochila pequena nas costas e o meião até os joelhos era fácil: futebol com os amigos. Ou com o pessoal do trabalho. Depois, cerveja, talvez. Dentro do Corolla que arrastava-se silencioso, mantendo distância mais que prudente do Chevette a sua frente, o homem de meia-idade, com os olhos sumidos, dirigia-se para um lar frio. Mais frio que a rua. Podia ser o maridão da tia da academia. Cada um com seu carro, para evitar muito contato.


De repente, desiste. Não da corrida: os pés continuam firmes, um à frente do outro, no ritmo cadenciado, controlado; máquina precisa. Desiste do joguinho. Aquela altura da vida, perdera a graça todo aquele observa-pondera-apreende-define.


Um dos fones cai do ouvido. Sem parar ou decrescer o ritmo, ajeita-o com cuidado no ouvido direito e isso o faz prestar atenção na música. Kenny G. Que péssima ideia. Não é música de correr. Tateia o bolso e procura o botão que troca as faixas do mp3. É hora de fazer a curva, entrar na Frederico. O cheiro de barro é substituído pelo aroma de orégano da pizzaria em frente ao posto de gasolina. Quem come pizza às cinco da tarde? Pensando bem, não é má ideia. Lembrou que tinha estômago e, este, lembrou que tinha fome. Mas nada de apressar o passo. O importante é constância. Finalmente encontrou trilha sonora apropriada para o momento. Tinha de lembrar de sacar o Kenny dessa lista. "Nada pessoal, Kenny, tu me serves a outros propósitos."


Havia mais carros enfileirados diante da sinaleira, ansiosos para entrarem na fila que já deixara para trás. A vida em sociedade consiste nisso de pular de fila em fila. E a fila anda, para alguns mais rápido, para outros nem tanto. Mas anda, ora ou outra, anda.


A Frederico é uma rua que desemboca na BR. Por conta disso ela começa um aclive sensível, mas notável, principalmente para quem está correndo há certo tempo. Era sempre por ali que ele lembrava que o que estava fazendo era exercício físico. Começava a doer. Ultimamente doía menos, mas doía. Doeria sempre? Ou chegaria um momento em que simplesmente se esqueceria que havia pernas e movimento e atrito? Não sabia, mas continuava correndo. O importante é constância.


Estava chegando à esquina do outro posto de gasolina e da sinaleira, onde mais uma curva à esquerda o esperava. Essa caracterizava o início do retorno, a volta ao lar. Era também o trecho mais penoso. Por ali, de carro em carro, um vendedor de flores, iluminado já pelos postes e faróis. Os buquês, com cinco ou seis peças, enroladas em cones papel pardo, estavam seguros pelo braço direito. Debaixo do boné azul com a inscrição de um nome político e seu número, os olhos miúdos espreitavam os condutores, esperando qualquer aceno afirmativo, seja de mão, seja de cabeça. Não acontecendo, retornava à sua base junto ao canteiro do posto de gasolina, onde outras flores repousavam em um caixote de madeira.


Mantendo o ritmo, o rapaz que corria chegou finalmente à esquina-canteiro-floricultura. Mirou os olhos miúdos e cansados do vendedor e tentou não pensar no assunto. Mas, por causa disso, não reparou em um botão de rosa vermelha que estava caído ali na calçada, provavelmente um botão que fugira daquela vida vazia de ser flor ornamental, sem valor senão pela beleza. Vida com final marcado pela queda das pétalas, pela opacidade da cor, pelo inodoro do cheiro. Desatento, o corredor pisoteou a rosa. Esgaçou-a, rasgando pétalas que ainda nem haviam aflorado. Misturou a essência do perfume com o úmido impuro da calçada, transformando a bela cor uniforme em borrão modernista.


Porém, não parou. Deteve-se, sim, em pensamento, por um instante. "Puxa, que pena." Mas seguiu com o ritmo cadenciado. O importante era constância.


Depois da curva, o aclive era ainda mais acentuado no sentido centro-bairro. Ia subir até o topo da colina, lá onde fica o Nilo, e depois desceria. Já não havia tantos automóveis, mas ainda havia. As pessoas continuavam voltando ou indo, de um lugar a outro, umas mais calmas, outras apressadas. Enquanto contorna o paredão à sua esuqerda que servia de base para a escola lá em cima, cheirava natureza. Natureza úmida, para ser específico. As árvores úmidas, mas mais ainda as folhas caídas e amontoadas na calçada, produziam esse odor agradável que sobrepujava-se aos gases nocivos das descargas. O aclive aumentava e era difícil de manter o ritmo. Suor já lhe descia pelas têmporas avermelhadas e pelas canelas lustrosas. Naquele momento, lembrou da rosa. Daquela rosa que ele esmagara contra o chão úmido.


Teve impulso de voltar e tentar, de algum modo, reparar o dano que causara à inocente flor. Talvez juntá-la e trazê-la em casa, coloca-lá em um vaso com água abundante e cuidá-la com carinho. "Não. Ela quis fugir, saltar fora do buquê, quis tentar outra vida. Agora tem que arcar com as consequências. It's a wild world." Mais uma vez esqueceu dela. Tinha chegado ao topo.


Na descida, o cuidado com a cadência era ainda redobrado. Chegava a contar a respiração. Normalmente, 2x1: inspira, inspira; sooolta. Não lembrava mais da rebelde flor vermelha, porém não a havia esquecido. Ela continuava por ali, como um sussurro inaudível de tudo que poderia ter sido, um sussurro que ele teimava não ouvir. Assim ele seguiu, ritmo certo, à frente. O importante era a constância.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Frio.

De lá vem o vento frio
Que evidencia o vazio
De meu peito aberto
Qual mar
Sem navio a navegar.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Controle da situação.

O árbitro apita e o jogo acabou. Mais uma vez, o seu time o decepcionou. Futebol é ingrato. A paixão de fã é sempre platônica. A relação, complicada, cheia de altos e baixos. Entretanto, desligada a televisão, a vida segue. A ida ao banheiro, o escovar os dentes e o urinar, tudo corre como antes. A noite lá fora, o silêncio escuro da cidade adormecida. Os postes não acendem, problemas decorrentes das fortes chuvas. Chega à cama e estende-se. Cruza as mãos atrás da cabeça e fecha os olhos. Sente falta de alguma coisa. Falta o sono. Ingrediente primordial para adormecer. Na falta de algo melhor, a mente se perde em pensamentos, alguns profundos, outros nem tanto. O que se pode esperar, afinal. Na verdade, não gosta de esperar. Puxa um Bukowski da estante, o último do beberrão. Lê, ri, sente pena. O pobre coitado, tão sem motivos pra viver senão o próximo gole. Gracejando, ainda: "apalpei meu coldre, o 38 estava ali. O melhor pau-duro que um homem pode ter". Quando o escreveu, devia estar nas últimas. Passou hora. Agora sim, dormiria. Fechou os olhos, só mais pensamentos: pegue Bukowski, troque o ácool por analgésicos e adicione um notável M.D. e teríamos um belo Dr House. Porém não é correto comparar pessoas com personagens. Vira para cá e para lá, cobre-se e descobre-se. Pega mais uma vez o livro e lê, ávido. O ponteiro avança cruel, já não há mais esperança, inútil lutar. A batalha acabou e a insônia venceu. Levanta e vai à cozinha. Uma pêra goela abaixo, mas não, ainda falta algo. Na geladeira, um ovo, que não fora apunhalado. É isso e o ovo cozinha. Goela abaixo com sal. Rocky não colocava sal, Rocky também não cozinhava. Já passa das três e o despertador está programado para as seis. Vamos de novo. Deita, fecha olhos e... pensa. Maldição, castigo de deus. Infinita felicidade dos animais que não pensam. Algo está errado ali, dentro do crânio, lhe diz o manual de psicologia de senso-comum brasileiro. Sabe o que há de errado: falta contato, falta cheiro, falta toque. Faltam braços e olhos e boca e pernas e seios. Envia uma mensagem de texto e recebe outra em seguida. O mercado de sms ainda está aquecido: há demanda e há oferta, todo tempo e toda hora, inclusive às quatro da manhã. Há solidão por todo o lado. Devia comprar ações de telefonia. Levanta novamente. Houve contato, nem tudo está perdido. Falta toque, é necessário tocar, sentir, pegar, mexer, tatear, apalpar, apertar. Na sala, liga o vídeo-game. Segura firme o controle e deixa os dedos brincarem alegres.