"Até mesmo o silêncio é um texto."

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Parte segunda.

Então foi que, naquela primeira noite, chegamos ao terraço. Durante o trajeto até o sétimo andar, fui alvo de furtivas tentativas de beijos que, ao não alcançarem a boca, tortutavam-me, descendo pelo pescoço. Passamos pelo corredor estreito do qual, ao lado esquerdo, se podia ver a paisagem escura ao norte através de longas janelas de vidro. À direita, as portas dos apartamentos. Do corredor quente, saímos para o terraço. Um vento severo nos recebeu. Havia no céu a lua, que por hora sumia por detrás de esparsas nuvens. Lá embaixo, a cidade continuava silenciosa. Se podia ouvir os carros que porventura aceleravam na Parnell Street, nada além disso. Sentamos em uma espécie de quiosque que havia por ali. Eu no canto de cá do banco, ela, no de lá. Encostei meu ombro esquerdo em um pilar que sustentava o pequeno telhado do quiosque, estiquei e cruzei as pernas e meti as mãos nos bolsos. Fiquei a fitar meus próprios pés, vestidos com tênis. Ora eu desviava pra ver o céu escuro, mas acabava por voltar a olhar os tênis. O vento frio e insistente continuava por ali.
- Tá frio aqui, gente...
- É. Isso é bom. Pra baixar o álcool.
- Eu não to bêbada, se é o que você acha.
- Ok. É bom tomar um ar fresco de qualquer jeito...
Um pequeno silêncio aconteceu. Então desdenhei a noite bonita que nos rodeava.
- Sempre que vejo a lua, penso em deus. - ela disse.
Fiquei um pouco surpreso de ouvir aquela palavra sair da boca dela de uma maneira tão afetiva, tão doce.
- É... por que os dois são distantes? - ironizei.
- Não. É tão bonito que só pode ser obra de deus. Mas pelo visto você não acredita...
A minha voz escorregava calmamente pela minha língua e dentes e lábios. Eu já tinha pensado muito no assunto, e já não tinha mais energia pra gastar naquilo.
- Eu não acredito que ele exista. Mas também não duvido que possa existir. O fato é que ele nunca se apresentou pra mim. Se ele baixasse aqui hoje e dissesse "Opa, Gian, tudo? Prazer, deus." aí eu ia perguntar pra ele o que ele acha de tudo e então... bom, aí não sei. Hehe. Só que eu respeito quem acredita de verdade, porque isso é bom para qualquer um. Te dá uma certa segurança, um last resort. Sentir que deus tá lá por mim e, se ele é por mim, quem será contra mim? Isso ajuda, é bom. Eu até invejo essas pessoas. A vida seria muito mais fácil se eu tivesse essa muleta. Meu pai chama de muleta. Ele é o mais ateu e critica bastante quem é crente. Eu, pelo contrário, mas não vou dizer que nunca fui radical. Já fui sim. Mas aí me dei conta que eu tava tentando fazer a mesma coisa que aqueles crentes chatos tentam fazer contigo: te converter. Depois que dei em conta disso, parei inclusive de falar no assunto. Não saio por aí espalhando meu ateísmo aos quatro ventos, mas se tu me pergunta, falo sem problemas.
- Eu não entendo como uma pessoa pode viver assim. Não sei se eu conseguiria. As coisas não têm muito sentido se você não acredita em algo superior, que tá lá por você quando você precisa, de quem você pode tirar forças. Não entendo... como que você vive, se você não tem deus com você? O que você busca?
- O que eu busco? Me manter vivo e pensando. Acho que é bem isso. Eu sou uma pessoa simples, se tu for ver. Estar com quem a gente gosta, tomar uma cerveja aqui e ali, dar umas boas risadas. Por aí.
- E quando você morrer?
- Ponto final. Acabou.
- Eu não sei, eu não conseguiria viver assim...
- Muita gente não consegue.
Houve uma pausa. Ela sentiu o vento mais frio, à medida que seus sentidos começavam a voltar à sobriedade.
- E como você descobriu que não acreditava?
- Acho que eu nunca acreditei... não sei, é difícil essa pergunta. Na verdade, nunca pensei nisso. Acho que não teve um ponto marcante que eu pensei "pronto, agora não acredito mais". Eu lembro de fazer orações que minha mãe me ensinou quando criança. Mas não me lembro se eu acreditava mesmo, ou se só repetia mecanicamente por que ela mandou... não sei. Ela ficou meio boquiaberta quando, lá pelos quinze ou dezesseis eu contei pra ela que eu não acreditava e era isso.
Ela fitava-me com olhos pedintes, enquanto eu mirava a lua.
- Tô com frio...
- Sinal que tá voltando a si.
- Eu nem tava bêbada.
- Sei.
- É verdade. Você ainda não me viu bêbada.
- Quer dizer que você é pior quando bêbada?
Ela só sorriu. E repetiu:
- Ai, que frio...
E apertou os braços contra o corpo num auto-abraço e fitou-me mais uma vez. Mas eu não ia abraçá-la.
- Vamos entrar então.
Levantamos e caminhamos até a porta, a qual eu puxei e segurei para ela passar primeiro, assim como eu já tinha feito com outras portas.
- Eu custo acreditar nessa sua educação de segurar a porta. Nenhum menino faz isso hoje em dia.
- Talvez nenhum dos que tu conhece. - eu disse. Ela sorriu.
- Não quero descer ainda.
- Tá, podemos ficar aqui pelo corredor.
Ela sentou no carpete, encostando-se na parede interna, enquanto eu sentei no vão das janelas de vidro. Sentei de lado, recostado na coluna de concreto que divide duas janelas, de forma que eu conseguia fitar o céu escuro à minha esquerda e ela à minha direita, quando conviesse.
- Ai, que vergonha... Você deve pensar que eu sou uma vagabunda, traindo meu namorado. É que você não entende.
- Não penso isso.
Claro que eu pensava.
- Que coisa louca, eu nunca ia pensar que isso aconteceria.
- Isso o quê?
- Que ia chegar alguém e ia acontecer tudo isso. Lembra a primeira vez que nos vimos? Eu cumprimentei você com o mais simpático dos sorrisos e você me olhou com uma cara, olhando de cima, tipo "que que essa paulistinha tá pensando que é?"
- Não, não pode ser.
- Foi. Me olhou com uma cara esnobe. Naquela mesma noite eu reclamei pro Vítor "esse gaúcho metido a separatista chega aqui e fica se achando mais que a gente..."
Eu tive que rir.
- Não é verdade, eu não pensei nada disso. Eu não pensei nada, na verdade, nem bem, nem mal.
- Fala sério. Você deve ter pensado, depois, "paulistinha barraqueira, fica gritando pela casa e tal".
- Não, não mesmo. Eu não julgo as pessoas antes de conhecer bem.
- Ah, fala sério que você não pensou mal de mim desde o primeiro dia?
- Eu já julguei muito as pessoas, sabe. Tipo, de cara, só de olhar pra pessoa. Mas isso não é justo, nem comigo, nem com o outro. Parei com isso. Me liguei que não dava boa coisa fazer isso. Só que também é impossível não fazer nenhum pré-julgamento, porque a gente faz isso no inconsciente, né...
- É.
Meu telefone começou a tocar. Como o microfone do aparelho estava estragado, eu precisava conectar os fones de ouvido antes de atender. Tudo estava embolado dentro do meu bolso, e por causa da demora para ajeita-los, não consegui atender a tempo. Era a gaúcha, nossa housemate. Merda, pensei, agora ferrou, com certeza ela vai desconfiar. Entretanto, minha preocupação não durou mais que o tempo de colocar o aparelho no chão, de forma a ser mais fácil de atender quando ela ligasse novamente.
- Era a Luisa...
- Ela deve tá preocupada comigo.
- Sim - e eu ri antes de continuar - quando estavamos lá no ap bebendo ela chegou pra mim e disse "Gian, controla a bebida dela que eu não vou cuidar de bêbado depois".
- Ah, fala sério?
- Eu disse "tá tranquilo, to controlando".
- E não tava controlando nada...
- Claro que não, não sou pai de ninguém aqui.

Uma nuvem tratou de encobrir a lua.
- Por que você sentou aí, tem medo de mim?
- Tenho.
- Eu não vou te morder...
- Será mesmo?
Risos. Eu via as nuvens movimentando-se, vultos na escuridão, e podia perceber a lua lá atrás.
- Senta aqui do meu lado, não vou incomodar você.
- Tá. Mas te comporta.
Fui e sentei ao seu lado, encostado na parede. Agora, podia ver as nuvens sem precisar virar o pescoço.
- Eu gosto de você.
A afirmação me surpreendeu. A voz doce e firme que a pronunciou, também.
Gostava eu dela? Não. Pensando bem, não tinha certeza.
- Eu também gosto de ti.
Ela sentira minha hesitação.
- Eu não to dizendo que amo...
Eu sorri, e, sorrindo, repliquei.
- Sim, e eu não entendi assim. Entendi o que tu disse. E eu também gosto de ti.
- Não acredito.
- Bom, não há nada que eu possa fazer.
- Eu gosto de você.
Odiei o replay. Repetições sempre acabam por soar mal.
"Tu já falou isso", pensei irritado. Contudo disse calmamente:
- É, tu já disse isso. Mas por quê?
- Por quê?
- Por que você gosta de mim?
- Ah... não sei, você é diferente...
- Pode apostar que sim...
- Tem esse jeito misterioso.
- Misterioso, eu? Não concordo...
- É verdade... você tem esse jeito e não fala muito.
- Bom, isso não quer dizer necessariamente que eu seja misterioso...
- Você foge quando a gente tenta conversar com você, tipo, sempre se esquiva. Parece que esconde algo e tem medo que a gente descubra muito de você. Parece que tem algo muito forte aí dentro que você não quer soltar...
Tive que parar um pouco pra pensar. Fazia sentido. "Bluebird".
- Por que você é assim, por que você não se solta? - ela perguntou.
- Boa pergunta, porque eu também queria descobrir. Até hoje ninguém conseguiu desvendar. Se você souber, por favor, me conta.
E então mirei os olhos dela e sorri.
- O seu olhar... é estranho.
Agora essa.
- Como assim?
- Não sei explicar, o seu olhar me desestrura...
O poder que ela me conferia revelando aquilo fez com que eu instintivamente voltasse a olhar bem fundo nos olhos dela, desejando aquele poder de provocar o caos, a inquietação no seu interior. Desfiz, imediatamente, sentindo o quão ridículo tinha sido.
- Talvez porque você nunca olha nos olhos da gente... - continuou ela.
- Deve ser, eu não costumo fazer isso mesmo. Às vezes eu me sinto desconfortável olhando diretamente nos olhos, não por minha causa, mas por causa do outro, porque pode se sentir encarado... entende o que eu digo?
- Sim...
- É, é isso.
A lua lá fora estava descoberta.
- Posso te beijar?
- Na bochecha...
- Não, eu quero na boca.
- Então pede pro teu namorado, eu disse sorrindo.
- Ai, pára...
- Por quê? Nada mais natural que tu pedir um beijo pro teu namorado, não?
- Ele não se importa comigo...
Ai, deus, não... não começa...
- Então larga dele.
- Não, é complicado...
- Porque tu quer. Eu sei lá, pra mim nunca foi complicado. Se tu gosta, fica junto, se não, separa. Prático, não acha?
- É, mas tem isso que eu prometi pra ele que ia ficar junto até a gente voltar pro Brasil.
- Sério? Tipo um contrato? Isso é a coisa mais moderna que eu já vi, pra não dizer outra coisa, hehe.
- Não é... é que a gente decidiu vir junto. E a nossa história também é um pouco fora do convencional.
- É? Como assim?
- Quando eu conheci o Vítor, ele tava namorando...
- E tu era a outra?
- Foi...
- E aí?
- Ele largou ela pra ficar comigo.
E então ela falou que não era aceita pelos pais dele e de algumas indiretas cruéis que ela recebia deles. Falou do quão sem voz na família era o namorado, que "abaixava as orelhas" para tudo o que diziam. Falou da própria família, das intrigas e dos problemas de se ter meio-irmãos que são preferidos. Falou da infância, que se vestia como menino; da adolescência, ainda vestindo-se como menino.
Depois de ouvir tudo aquilo, fiquei desarmado e passei a sentir alguma espécie de carinho, alguma solidariedade por aquele outro ser que tinha problemas maiores que os que eu nunca tive.
- Você é uma pessoa muito legal por me ouvir aqui, reclamando da vida.
- Tu já deve ter visto que eu prefiro muito mais ouvir que falar.
- É verdade. Mas agora você vai falar. Eu fiz um relatório da minha vida, agora é sua vez.
- Não tem nada de especial, minha vida é normal demais...
- Vê só, já tá se esquivando...
- Tá bom, mas não tenho culpa se tu dormir enquanto eu falo...
E então eu fiz um relato breve dos highlights da minha timeline. Alguns estavam no facebook, outros nunca estarão. Confesso que deixei escapar várias coisas que eu jamais diria a alguém que conhecia há tão pouco tempo, porém eu estava de certa forma à vontade e tudo saiu leve e displiscente.
- As coisas que você me contou não são de uma vida normal, mas ainda assim acho que você não me contou tudo...
Concordei sorrindo.
- Tem coisa que eu procuro nem contar pra mim mesmo...
- To adorando ficar aqui contigo. Você é um menino diferente...
- É, eu sei. Agora se isso é bom ou ruim, é outra história.
- Isso é bom. Gente, não sei o que tá acontecendo aqui... me beija!
- Não. Eu sei bem o que tá acontecendo. O Vítor tá em Londres com os pais e tu acha que ele tá te traindo com alguém, ou com vários alguéns, porque ele já fez isso antes, tu bem sabe. Aí tu tá me usando pra fazer vingança de uma coisa que tu nem sabe se aconteceu...
- Eu não tô te usando.
- Não tem problema... todo mundo usa todo mundo. As relações entre as pessoas são assim. Cada um usa o outro praquilo que interessa. Tu tá querendo me usar pra fazer vingança no namo, e eu to te usando como amiga, pra ter uma conversa assim.
Eu tinha o braço direito recostado no joelho da perna direita que estava dobrada, enquanto a esquerda deitava-se por completo em direção à parede oposta. Agora eu deixava os olhos seguirem o movimento do meu polegar que acariciava as unhas dos outros dedos num movimento distraído.
- Se eu tivesse procurando só isso eu podia ter feito com qualquer um...
- Ah sim, mas eu era o único homem ali. Loirinho e de olho azul, ainda por cima.
Sorri. E ela também teve de sorrir.
- Não é, eu gosto mesmo de você, gosto do jeito que você conversa, falando devagar, sem pressa e com calma.
- É mesmo? Tem gente que acha que eu sou esnobe por falar assim.
- Pode parecer pra quem não te conhece de verdade.
- Tu me conhece de verdade?
- Não tudo... mas eu sinto que você é uma pessoa boa.
- Eu tento ser, mas nem sempre a gente consegue, né...
- Não, mas você é.
Então meu celular tocou mais uma vez. Era Luiza novamente. Com um jeito de mãe, perguntou o que acontecia ali e eu disse que a paulista dormia e daqui a pouco eu a acordaria e desceríamos ao apartamento. Duvido que ela tenha comprado. Já fazia umas duas horas que estávamos lá.
- Certo que ela desconfia de algo.
- Não, ela é meio bobinha... - disse a Paulista.
Eu tive que concordar com uma risada.
- Eu nunca tive uma conversa assim com ninguém...
- Como assim?
- Conversar de coração aberto, assim como estamos fazendo.
- Sério? Tu não tem nenhuma amiga com quem você pode falar tudo, assim, sem medo de ser julgada e coisa e tal?
- Não.
- Tá, aqui em Dublin, não. Mas no Brasil?
- Não.
- Mesmo? Ninguém pra ouvir e ninguém pra te ouvir?
- Não.
Então eu fiquei surpreso. Quando você descasca uma pessoa, está sujeito a isso. Ela era uma guria das mais extrovertidas, como eu já disse, mas, aparentemente, agora eu descobria, só para trivialidades. Ela não tinha com quem se abrir, com quem desabafar as inquietudes mais profundas de seu ser. Aquilo sim devia ser terrível.
- Você tem alguém assim?
- Claro! Meus amigos, meus bruxos. Aqueles que te falei antes. Logo se vê que eu não tenho muitos amigos, mas os que tenho são mais do que eu poderia pedir. E isso é uma coisa que eu acho muito engraçada aqui em Dublin. O pessoal vem de tudo quanto é lado, aí conhece o pessoal da casa e de repente, menos de uma semana, já são os melhores amigos da vida. Não sei, eu não consigo achar isso normal... não pra mim, né, que sou diferente...
- Concordo com você...
Senti a melancolia que saiu naquelas palavras. E ainda mais nas que se seguiram.
- Eu quero muito te beijar.
E então eu amoleci e aproximei minha face da dela e a beijei delicadamente nos lábios carnudos.