Estava agora mesmo no chuveiro, que - assim como o vaso - é berço de grandes ideias e pensamenos profundos. Enquanto ensaboava o suvaco, pensava nas mil pequenas coisas que tenho que fazer. Umas são mais urgentes, outras nem tanto, mas sempre acabo priorizando as últimas. Por exemplo escrever um post inútil que vai ser lido por meia dúzia - se muito! - em vez de fazer todas aquelas outras coisas muito mais urgentes que mencionei. Azar, eu to com vontade de escrever, e gosto de satisfazer as minhas vontades.
Eu pensava precisamente numa papelada que tenho que enviar pro Toninho. Aí alguns neurônios resolveram se ligar e trocar uma ideia e eu acabei voltando alguns meses no tempo. Éramos ele e eu, no Uno, em algum ponto entre Novo Hamburgo e Santa Maria. Eu dirigia sob um céu nublado e ele, sentado no carona, fiscalizava cada milímetro dos meus movimentos como motorista. Não estava acostumado a ser "dirigido" e isso o incomodava. Aqui e ali, eu encostava na bunda de um caminhão e ultrapassava com o pé no fundo. O Toninho reinava, e eu retrucava qualquer coisa sobre sua idade avançada, ou alfinetava a própria insegurança de não estar no comando. Ele era obrigado a sorrir. E que sorriso fascinante! Nem para a mais engraçada das piadas ele perderá as rugas, ou melhor, linhas de expressão, que habitam o espaço entre suas sobrancelhas negras desde o tempo em que assumiu sua cara-de-sempre. Um tipo de máscara de carne, carrancuda, séria, do tipo que duvida de tudo e de todos; do tipo que tá pronta para a briga. O sorriso é sincero, a boca e os olhos não negam, mas a inqusidora expressão das sobrancelhas está lá, não cai.
Não lembro o que conversávamos. Provavelmente eu tentava arrancar alguma história do seu passado, tentando driblar a suas evasivas. Quem conhece o Toninho sabe do que falo. Não é homem de muitas palavras, muito menos o tipo de pai sábio que dá conselhos tirados de algum livro do Paulo Coelho. Mas foi que, no meio de uma dessas histórias que consegui extrair com esforço, ele diz, enquanto mira a estrada e guarda uma garrafa de suco de laranja no porta-luvas:
- Tem que aprender a ficar sozinho.
E, naquele momento, ele perdeu toda a minha atenção. Depois daquelas palavras, tudo o que eu soltava eram monossílabos positivos, concordantes com o que quiser que estivesse saindo de sua boca. As palavras ecoaram bonito dentro da minha cabeça, e continuaram a ecoar num vaivém que demorou alguns minutos a cessar. Aquela frase foi forte. Entretanto, perigosa, se dita sem contexto. Ele não se referia a viver sozinho, isolado numa cabana no meio do nada, tampouco a ser um solteirão anti-casamento - ele mesmo já se casou, pelo menos, umas cinco vezes! O que ele dizia é que é preciso saber viver aquele dia de folga em que todo mundo está trabalhando, ou aquele domingo em que ninguém está na cidade. Não enlouquecer por não ter ninguém ao redor, não mendigar atenção e por aí vai.
Meses passaram e eu continuo dando esporádica atenção àquele pensamento. Já fui longe com a questão, chegando a extrair alguns sentidos a mais, tipo estar sozinho é estar consigo mesmo e, portanto, saber estar sozinho e saber estar consigo mesmo; é se conhecer.
Porém, os já ditos neurônios fizeram outras ligações e me trouxeram de volta a um presente mais recente. Em fevereiro, conheci esse rapaz, o Lucindo, que estava envolvido com a amiga da Mariana, minha vizinha de quarto. Gaúcho de Uruguaiana, baixinho, chegou com uma cuia na mão e fazendo piada do Colorado, já que tinha visto o símbolo do campeão de tudo bordado nas minhas calças. Não entendi. Foi um daqueles comentários que não dava pra saber se estava sendo sarcástico, ainda mais porque eu não lembrava que havia um símbolo na minha calça, e fiquei pensando como que ele saberia pra qual time eu torcia. Mas tudo bem, passados os segundos embaraçosos em que ele teve que explicar a piada, a conversa seguiu bem regada a mate. Naquela tarde, descobri que era um quarentão - daquele tamainho - formado em turismo, tinha trabalhado na Feevale e agora trabalhava na cozinha de um restaurante, lavando pratos. À noite, íamos todos à despedida da Mariana num pub do centro da cidade. Sendo assim, ofereci a minha Sparkling Ale para degustação. Ele interessou-se pelo meu equipamento, que eu colocaria à venda assim que terminasse o próximo lote de cerveja, para o qual estava esperando os ingredientes chegarem pelo correio. Disse-lhe o preço e mais ou menos expliquei como era o processo. Mostrou-se definitivamente interessado na compra, e combinei que chamá-lo-ia para acompanhar o processo, quando estivesse produzindo o próximo lote.
Assim o fiz. Numa quinta-feira feia, choviscando, ele tocou a campainha de casa. Abri e ele entrou com a bicicleta molhada pela sala de estar, pela cozinha e finalmente estacionou-a no pequeno pátio atrás de casa. Era por volta de duas da tarde, quando nos abancamos na cozinha e preparamos um mate. Comecei em seguida os trabalhos. Parecia um video de "how to" desses do youtube. Enfim terminamos e almoçamos um bolinho de carne que ele trouxera. Continuamos a papear. Já era três, três e meia e o rapaz falava e falava e nada de se mexer pra ir embora. Comecei a responder em monossílabos. Dos monossílabos, passei a grunhidos. Depois peguei o celular e fiquei fuçando descaradamente, enquanto ele dizia umas asneiras meio racistas sobre gaúchos e nordestinos. Sim, porque ele se considerava um vencedor na vida, dê certo; quarentão, lavando pratos num restaurante, contribuindo uma barbaridade para o desenvolvimento da nação. O pior é que a chuva não dava trégua, e mesmo eu de saco cheio ainda tinha certo discernimento pra não mandar o cara embora embaixo d'água. Mas ele continuava falando com aquele tom de quem entende tudo e até o seu sotaque de Uruguaiana começou a incomodar. Fiquei no celular, grunhindo, considerando-me uma pessoa horrível, embora de saco cheio o bastante pra perdoar a mim mesmo. Finalmente, ele se tocou, lá pelas quatro passadas.
- Bom, acho que vou tomando meu rumo...
Hesitei alguns segundos antes de dizer "a pressa é tua..." Vai que ele decidia ficar mais um pouco. Felizmente, não, e fechei a porta deixando ele e sua bicicleta do lado de fora, embaixo de uma chuva fina. Não sem antes, combinarmos de sair pra uma cerveja "uma hora dessas". É claro que essa hora nunca chegou. Ao virar a chave, senti um alívio parecido com aquele depois de despachar aquela bosta dura, que te sai do rabo arranhando, depois de fazer muita força.
A moral da história então é que o Toninho só falou metade da lição. Tem que aprender a estar sozinho, sim; mas também tem que aprender a estar com os outros, coisa muito mais difícil.